Abordar mulheres desconhecidas em lugares públicos é agressivo.
Pesquisa aponta que 83% das mulheres não gostam das cantadas de rua.
por Nádia Lapa — publicado 11/09/2013.
Durante vários anos, eu voltava de
ônibus da faculdade e descia bem em frente a um quiosque de sorvete. Aqueles,
de casquinha, que eu costumava pagar com um trocado qualquer encontrado no
bolso. Morava no Rio de Janeiro, cidade calorenta, e a tal sorveteria fica em
plena Avenida Nossa Senhora de Copacabana, a mais movimentada do bairro.
Eram dois quarteirões entre a
lanchonete e a minha casa. Antes de chegar à portaria, já tinha tomado o
sorvete todo. Não por gulodice, mas porque aquela experiência tinha que
terminar logo. Logo. O mais rápido possível. Era sempre início da tarde, o céu muito
azul, as pessoas indo-voltando de bancos, supermercados, trabalho, farmácia. E,
no meio daquelas pessoas, gente como a gente, sem qualquer aparência
monstruosa, alguns incontáveis homens faziam gestos e falavam palavras
obscenas. Gente que eu nunca vi. Que eu nunca mais veria. Mas que transformavam
o simples prazer de tomar sorvete num verdadeiro suplício.
A sensação era horrível. Os homens
olhavam para mim e faziam gestos remetendo a sexo oral, das formas mais
nojentas possíveis. Eu me sentia constrangida, mas nunca parei de tomar meu
sorvete - só o fazia o mais rápido que podia, além de jamais manter contato
visual com qualquer estranho.
Eu pensava que tal coisa só
acontecia comigo. Mulheres não temos clubinhos ou encontros semanais, como os
homens no futebol ou na antiga maçonaria, para compartilhar coisas do dia a
dia. Depois que comecei a escrever sobre feminismo, perguntei algumas vezes no
Twitter se a abordagem agressiva ao tomar sorvete também acontecia com outras
mulheres. As respostas foram sempre positivas - e incluíam outros alimentos,
como churros.
Portanto, para nós, feministas,
não foi nenhuma novidade o resultado da pesquisa feita pelo site Olga, de
Juliana de Faria. Quase oito mil mulheres responderam o questionário elaborado
pela jornalista Karin Hueck, e todas (99,6%) relataram já terem sofrido assédio
na rua. "Os números são revoltantes. Mais do que isso, são assustadores.
Mas, infelizmente, não são uma surpresa alguma para as mulheres. É uma
prova de que nós não sentimos segurança em fazer atos corriqueiros, como
caminhar pela rua", diz Juliana.
Ao contrário do que supõem os
homens, mesmo sem nunca terem parado para perguntar como se sentem suas amigas,
namoradas ou irmãs, as
mulheres não gostam da abordagem feita por estranhos.
Segundo a pesquisa, 83% das mulheres não gostam do assédio
nas ruas. A pergunta que sempre surge, como se qualquer
coisa na vida da mulher tivesse o fim de se relacionar com um homem, é
"como vamos paquerar agora?". Paquerando, oras. Paquera e assédio são
duas coisas completamente diferentes. A primeira pressupõe o engajamento de
todos os envolvidos. Isto é, existe reciprocidade. O assédio é diferente: o homem
se acha no direito de importunar uma mulher que está indo para o trabalho, para
academia, ou apenas tomando um sorvete.
São locais e situações que não
oferecem segurança e conforto às mulheres. Nem mesmo na balada, local onde,
segundo o senso comum as pessoas estão na guerra, o assédio deve
acontecer. Reciprocidade, sempre. É incrível ter de explicar isso ainda hoje. E
é necessário, pois 90% das mulheres já trocaram de roupa pensando no assédio.
Oito a cada dez mulheres deixou de fazer algo com medo de ser assediada. O
mesmo número diz ter sido assediada na balada, com puxões de cabelo e sendo
seguradas pelo braço.
Isso é paquera?
Isso é saudável?
Alguma mulher já saiu correndo
atrás do motorista de um carro qualquer que buzinou para ela ou fez comentários
sobre alguma parte do corpo dela, constrangendo-a publicamente?
Isso é, na verdade, controle e
poder - e o lembrete de que o lugar de mulher é na vida doméstica. Não
ocupe espaços públicos, porque lá você será assediada/agredida/constrangida.
O assédio na rua é tão
problemático que diversos cartazes na Marcha das Vadias trazem manifestações de
mulheres cansadas de serem objetificadas e desumanizadas, como se seus corpos
servissem apenas para deleite dos homens. O coletivo da Marcha das Vadias de
São Paulo falou com o Feminismo pra quê? sobre a pesquisa
do Olga: "Poder caminhar pela rua em segurança ainda não é um
direito conquistado e, no dia em que se juntam a outras milhares de mulheres na
Marcha, cada uma percebe que seus temores cotidianos não são exagero, mas
fruto da cultura do estupro, que dissemina e legitima o assédio e o
estupro como forma punição para as mulheres".
Para muitos, aqueles que não
repensam a roupa e tomam sorvete numa boa nas ruas, falar sobre assédio pode
parecer exagero. "O assédio sexual em locais públicos é tratado como uma
não-questão. É um monstro invisível, sem estudos, pesquisas, matérias,
relatórios sobre o fato. E é impossível lutar contra um problema que não temos
nenhuma informação a respeito", comenta a jornalista Juliana de Faria, do
Olga.
A Marcha das Vadias, mais
recentemente, e outros coletivos feministas sempre bateram nesta tecla. Com a
pesquisa realizada pelo Olga e as reações nas redes sociais, vindas de não
feministas, já temos um panorama importante: assédio nunca é legal. Não é
lisonjeiro, não faz bem pra autoestima, não deixa a mulher confortável. Chega
de fiu fiu.
Para conhecer os demais resultados
da pesquisa, clique aqui.
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