Publicado em 15 de julho de 2009
Por Patrícia Rocha, no jornal Zero Hora.
Há três anos, um integrante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) perguntou à psicanalista Maria Rita Kehl como a psicanálise poderia ajudar a militância. Não era a primeira vez que Maria Rita estava palestrando para uma turma de alunos da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), centro de formação e ensino idealizado pelo MST. Ela respondeu que a psicanálise não é uma prática militante, mas que muitos militantes precisariam fazer análise por razões particulares.
E explicou: – A neurose interfere na relação dos sujeitos com o laço social, o que vale para a militância.Ao contar o episódio, Maria Rita, nome de referência da psicanálise no Brasil, diz que eles entenderam imediatamente o que estava implícito naquelas palavras. E, na saída, dois administradores da escola perguntaram:
– Quando você pode começar?
Na semana seguinte, Maria Rita deu início à experiência que já dura três nos e meio.
Doutora em Psicanálise, a campineira Maria Rita trilhou uma trajetória singular. Cursou Psicologia na USP em tempos de ditadura, trabalhou sete anos como jornalista, fez mestrado sobre televisão, teve um filho quando morava em uma comunidade e só em 1981 começou a atuar como psicanalista – e logo mais poeta e ensaísta. Suas palestras e seus livros transitam por diferentes temas: TV, juvenilização, ressentimento, feminino, ética na psicanálise... O lançamento mais recente, O Tempo e o Cão – Atualidade das Depressões, teve início a partir de um pequeno incidente a caminho da ENFF, quando, premida pelo tráfego na Via Dutra, Maria Rita viu um cão atravessar a pista, mas não pôde evitar bater no animal, que sobreviveu. Travestido de metáfora, o episódio a fez refletir sobre a aceleração da vida e seus efeitos subjetivos. Neste longo percurso, analisar integrantes do MST e transitar no seio do movimento surge como a oportunidade de descobrir um universo fundado no coletivo e, como ela conta na entrevista a seguir, um privilégio.
Zero Hora – Gostaria que a senhora contasse como se aproximou do MST e tornou-se psicanalista de membros do movimento, detalhando como esses atendimentos funcionam hoje. Quantos pacientes do MST têm no momento e com quem freqüência os atende? Com base na premissa de que o pagamento, por menor que seja, é importante como forma de registrar o investimento do paciente nas sessões de psicanálise, a senhora cobra a sessão, um preço simbólico que seja?
Maria Rita Khel – O MST tem uma escola nacional de formação de lideranças, a Escola Nacional Florestan Fernandes, a 60 km de S. Paulo. Em 2005 e 2006 fui algumas vezes lá, dar aulas sobre temas de interesse deles em um curso sobre a compreensão da realidade brasileira organizado pelo professor Paulo Arantes. Nas duas vezes, alguns alunos mostraram curiosidade sobre a psicanálise. Da segunda vez, ao me perguntarem "como a psicanálise pode ajudar a militância?", eu respondi que a psicanálise não é uma prática militante, mas muitos militantes precisariam fazer análise, por motivos particulares. Expliquei, também, que a neurose interfere sempre na relação dos sujeitos com o laço social, o que vale para a militância, também. Eles me entenderam, imediatamente. Quando saí da sala, dois administradores da escola me perguntaram: “- Quando você pode começar?". Na semana seguinte estava lá, não para fazer conferência, mas para atender pacientes. Arrumaram-me um dos quartos do alojamento e os pacientes começaram a chegar: alguns dos trabalhadores fixos da escola, outros de outros Estados, que estavam lá de passagem, fazendo cursos. Desde aquela época, ou seja, há 3 anos e meio, vou quinzenalmente à ENFF e atendo quem estiver lá. Há pacientes fixos, outros que estão de passagem e vêm falar, duas ou três vezes, o que já é suficiente para acionar neles um início de intimidade com o inconsciente que eles aproveitam muito. Não cobro nada pelas sessões feitas na Escola, mas se algum deles vem a SP, fazer uma sessão extra em meu consultório, cobro 15 reais. Até hoje isso não foi motivo para eles não se responsabilizarem pela análise. Eles sabem que meu trabalho lá não é por caridade nem por amor pessoal a cada um deles - é a "minha militância". Este é o valor que eles me dão em troca do trabalho. Mas levam suas análises muito a sério, como, aliás, levam a sério quase todas as escolhas que fizeram.
Zero Hora – Para alguém que chega de fora e depara com o movimento em ação, nas atividades e eventos coletivos de que a senhora participou e, individualmente, nas pessoas que analisa o que mais lhe chamou atenção neste universo? É possível comparar questões, dores e valores que predominam entre os pacientes de seu consultório particular, em São Paulo, e os pacientes que atende na Escola Florestan Fernandes?
Maria Rita Khel – As formações do inconsciente não variam muito; lá existem neuróticos como em toda parte. Recebi alguns alcoólatras também, pois este é um dos sintomas mais freqüentes, sobretudo entre homens, na sociedade brasileira – e nas classes pobres, mais ainda. O que é muito diverso da minha clínica em SP são as histórias de vida, evidentemente. 100% dos analisandos do MST têm origem pobre, a maioria do meio rural; alguns, os mais jovens, sobretudo, já vieram das periferias das cidades, onde além da pobreza conheceram muita violência. São histórias de vida que implicam em maior sofrimento real, mas os sintomas que se formam a partir da experiência traumática não variam muito. Trata-se, sempre, de tentar escutar as pistas que indiquem o que está recalcado e fazer com que a pessoa também se escute e questione o que diz, de modo a encontrar pistas que a orientem na via de seu desejo. O que mais diverge da minha experiência com a clínica em São Paulo é que no MST não percebo, entre as queixas e indagações dos sujeitos, a prevalência do imaginário romântico-sentimental (inclusive no que diz respeito à demanda de amor, na transferência). Não é no amor que eles buscam indicadores de seu valor para o Outro – é na "luta". As histórias de sofrimento familiar, ou conjugal, raramente se centram nas demandas de amor não correspondidas, endereçadas ao pai, mãe, esposa/esposo. Não escuto essa queixa de que o pai, ou a mãe, gostava mais do irmão/da irmã/ se me ama/ se não me ama, etc. Não que a questão do valor do sujeito para o Outro não exista, mas curiosamente, ela não passa tanto pelas relações amorosas e familiares, nem pela demanda de amor ao analista.
Zero Hora – Os movimentos sociais se fundam na noção do coletivo. Esta questão transparece de alguma forma quando um membro do MST está no divã?
Maria Rita Khel – Aparece sim, nas queixas freqüentes de que o trabalho grupal, muito exigente, deixa pouca margem para os chamados "cuidados de si" – lazer, namoro, leituras, passeios, descanso. Mas não é difícil fazer com que eles percebam que o excesso de dedicação à "causa" coletiva pode ser um meio de escapar das questões singulares de cada um. Claro que estou generalizando, alguns permanecem muito mais aferrados a cumprir "o que o Outro quer de mim" do que outros etc. Ao longo de algumas análises, emergem muitos conflitos com as normas coletivas da Escola – o sujeito, ao entrar em sintonia com o desejo, torna-se rebelde. Mas essa rebeldia raramente é da ordem do individualismo, mais freqüente nas classes média e alta urbanas. Eles se rebelam contra a rigidez das normas coletivas, mas não perdem de vista o fato de que estão no movimento por escolha política e têm uma responsabilidade para com ele.
Zero Hora – A senhora sempre demonstrou uma posição de esquerda, uma postura crítica acerca da sociedade de consumo e seus valores. Como isso se reflete na realização deste projeto junto ao MST e até mesmo em sua atividade como psicanalista?
Maria Rita Kehl – Posso te dizer que sempre que saio de lá, penso que sou uma privilegiada por ter encontrado o MST e ter sido acolhida por eles como pessoa de confiança. Também me acho uma pessoa de sorte por ter sido convidada a exercer a psicanálise, sem nenhuma concessão, em meio a este que é hoje o maior movimento social do mundo, com 600 mil militantes e 2 milhões de pessoas afiliadas a ele (incluindo famílias já assentadas, que às vezes não militam mais, mas reconhecem sua filiação ao MST). Não é preciso fazer concessões para exercer a psicanálise entre eles porque, apesar da origem católica e rural, o movimento é legitimamente progressista – assim como a psicanálise, aliás.
Zero Hora – Ao passar a freqüentar um universo diferente do seu, marcado por bandeiras de luta e o sentido coletivo, em algum momento a senhora temeu a possibilidade de idealizar o movimento ou seus membros? Ou já se sentiu cobrada por membros do MST a agir de forma militante?
Maria Rita Kehl – Nunca fui cobrada a agir como eles, seja isso o que for; mesmo porque, entre eles as diferenças de modos de agir também são muito grandes. Sinto-me respeitada, inclusive em meu estilo mais aburguesado de ser: vou de carro, volto para SP depois dos atendimentos porque quero aproveitar o sábado, raramente fico lá para dormir, etc. Agora, não há dúvidas de que, para mim, é fácil idealizar o movimento. Não tanto pelo modo como eles conduzem suas lutas – tenho sérias divergências sobre algumas estratégias e falo sobre elas com pessoas que não são meus pacientes, quando os encontro no almoço ou nos debates de que ainda participo. O que eu sinto que idealizo, no MST, é a formação humana que eles conseguem obter. A maior parte dos militantes veio de meios sociais violentos, com pouca escolarização, pouca noção de dignidade e respeito, tanto do sujeito quanto na relação com o outro. No movimento, o valor da leitura, do conhecimento, da lealdade e da solidariedade, são imensos. Mesmo na clínica, onde os problemas mais profundos vêm à tona, não deixo de sentir admiração pela maioria de meus pacientes da ENFF. Para você ter uma idéia, sabe qual é a maior demanda de "ascensão social" entre eles? Não é ganhar mais ou subir para uma posição de poder: é ser incluído entre os que podem estudar mais, entre os que têm direito a freqüentar os cursos, etc. Eles são muito sérios quanto a este aspecto; e quanto à solidariedade também, apesar de todos os defeitos humanos, que são os mesmos que os de todos nós. Mas isto não significa que eu não tenha admiração pelas pessoas que atendo em minha clínica particular, em São Paulo. Tenho sim, por quase todos eles, pela coragem em enfrentar seus fantasmas, em buscar sua via. Talvez a diferença não se coloque em relação ao valor de cada sujeito, um por um, mas em relação ao "caldo de cultura" em que se vive, lá e cá.
Zero Hora – Houve um momento de maior condescendência – mesmo idealização – dos movimentos sociais no Brasil. Em sua opinião, que imagem esses movimentos têm hoje no país?
Maria Rita Kehl – Não sei responder.
Zero Hora – E como a psicanálise compreende os movimentos sociais?
Maria Rita Kehl – Não sei grande coisa as respeito. Só aponto que existe, entre alguns psicanalistas, um preconceito de que a participação num movimento social seria uma forma de alienação. Como se a adesão quase religiosa à psicanálise e às instituições psicanalíticas não fosse!...
Zero Hora – As questões do feminino e do feminismo figuram entre os temas sobre os quais a senhora já escreveu. Como avalia a posição das mulheres e as relações entre os sexos dentro do MST?
Maria Rita Khel – É uma posição muito interessante, a das mulheres. Até agora não encontrei, entre as mulheres que atendo no MST, nenhuma que não seja autenticamente feminista, no sentido mais profundo do termo. Ou seja: são mulheres bastante livres em suas escolhas sexuais e amorosas – até mesmo as que vieram de movimentos da Igreja, mas que na análise, lutam para superar os entraves da moral católica. Ao mesmo tempo, são tão decididas e dedicadas quanto os homens. É interessante a posição das mulheres no movimento: muitas delas, por exemplo, têm cargos mais altos do que seus maridos. Provavelmente, nos acampamentos, entre pessoas que vieram de outros lugares e acabam de ingressar no MST, deve haver muito machismo; este é o perfil da sociedade brasileira. Mas não o encontrei entre os "compas", como eles se chamam, que transitam no nível da ENFF. O outro detalhe interessante é que as mulheres que atendo lá, nunca submeteram a vida da militância às conveniências do casamento. Viajam pra lá e pra cá, estudam nos cursos em módulos que o MST oferece em convênios com universidades – 3 meses na faculdade, 3 meses no movimento, durante toda a duração do curso – e os maridos seguram a onda, cuidam das crianças quando elas estão fora, etc. O amor não é o centro da vida delas, o que é muito difícil de encontrar. E também não medem seu valor pelo olhar de um homem; nunca ouvi uma moça que não namora dizer que se sente inferior às outras por isso.
Zero Hora – A senhora conta em "O tempo e o cão: a atualidade das depressões", como um incidente a caminho da Escola Florestan Fernandes estimulou reflexões que culminaram neste livro que traz a depressão como sintoma social. Esse seu trânsito dentro de um movimento social e suas questões contribuiu de alguma forma para essa análise?
Maria Rita Kehl – Talvez sim, no que diz respeito ao modo de viver o tempo. Por mais tarefas que eles tenham lá, a relação com o tempo numa perspectiva não capitalista é diferente da velocidade maluca que rege a vida de quase todos nós. A relação que faço entre aceleração da vivência temporal e depressão, certamente tem um pouco a ver com minha experiência no MST.
Zero Hora – A escolha de objetos e temas de trabalho sempre revelam algo do pesquisador em questão, pelo menos uma afinidade. Na sua trajetória acadêmica e profissional, a senhora já passou pela televisão, as questões do feminino, a ditadura do corpo e a juvenilização da cultura ocidental, ética, política, depressão, além deste projeto no MST. O que este percurso revela a seu respeito?
Maria Rita Kehl – Se eu soubesse, não continuaria buscando. Deixo essa resposta pra depois da minha morte.