* Luciana V. K. Mai - Psicologia Unijuí.
Quando da escritura do texto “Mal Estar na Cultura”, Freud teceu as seguintes considerações:
“Em nenhum de meus trabalhos anteriores tive, tão forte como agora, a impressão de que o que estou descrevendo pertence ao conhecimento comum e de que estou desperdiçando papel e tinta.... para expor coisas que, na realidade, são evidentemente por si mesmas”.
“O que eu haveria de fazer? Não se pode fumar o dia inteiro e jogar cartas; não tenho mais firmeza para andar, e a maior parte do que se pode ler não me interessa mais. Eu escrevi, e passei muito agradavelmente o tempo com isso”.
As reflexões de Freud suscitam a sua dúvida, como também, uma necessidade teórica da psicanálise em consonância com uma leitura mais sociológica da civilização para que se possa dar conta daquilo que vem dos homens pelo social. Em carta para Lou Andréas-Salomé, ele diz: “Este livro trata da civilização, do sentimento de culpa, da felicidade e de outras coisas nobres do mesmo gênero....” Mas segue dizendo que, “(...) Enquanto me dedicava a este trabalho, descobri as verdades mais banais”.
Quando Freud se refere às verdades banais, nos reportamos ao Capítulo II, onde ele nos ilustra varias formas de se obter a felicidade. Ora, existiria coisa mais banal do que a chamada felicidade? Na seqüência do Capítulo III, a sua premissa nos leva a crer que sim: “(...) A nossa investigação sobre a felicidade não nos ensinou quase nada, que já não pertença ao conhecimento comum”. No entanto, esta coisa chamada felicidade é o que o homem mais persegue e, para compreender este percurso da civilização humana, a grande questão não é propriamente o que o faz feliz, mas o que o homem faz, no sentido da ação, da atividade na cultura, para evitar o sofrimento.
Quais seriam as fontes do sofrimento humano? Freud nos indicou três elementos:
- O poder superior da natureza;
- A fragilidade de nossos próprios corpos.
- A inadequação das regras que procuram ajustar os relacionamentos mútuos dos seres humanos na família, no Estado e na sociedade.
Quanto aos dois primeiros elementos, não há como discordar: “Nunca dominaremos completamente a natureza, e o nosso organismo corporal, ele mesmo parte dessa natureza, permanecerá sempre como uma estrutura passageira, com limitada capacidade de adaptação e de realização”.
Mesmo que o homem domine toda tecnologia, ciência, arte e intelectualidade, o que permanece, transforma-se em processo da civilização – um processo sócio-histórico; seu corpo propriamente se desintegra; sua matéria é incorporada ao grande todo da natureza. Como em poesia de Augusto dos Anjos: “Eu filho do carbono e do amoníaco, digerido e carcomido pelos abomináveis vermes da morte que fazem parte da terra”. No entanto, nada disso paralisa o homem, pelo contrario, ele se serve de seus conhecimentos para aprimorar aquilo que lhe traga momentânea parcela de prazer e felicidade. O saber da morte e sentimento de sofrimento move a civilização, a impulsiona na criatividade das próteses da vida. A contemporaneidade nos prova isto de maneira muito clara, se pensarmos nos elixires, cremes, cirurgias estéticas e toda gama de ciência e tecnologia médica e estética a procura da longevidade. Afora as logosofias, espiritualismos, religiões e auto-ajuda para o homem melhor desfrutar aquilo que chama de vida. Desta forma, o movimento da vida procura, de todas as formas, evitar o movimento da morte. Aquilo que Freud, lá no texto das Pulsões e no texto Além do Princípio do prazer, já antecipava, uma luta constante de EROS e Thanatos.
A terceira fonte do sofrimento humano, poderíamos dizer que é o próprio homem em ação sobre si mesmo. Freud chama de “A Fonte Social do Sofrimento Humano” e acrescenta dizendo que esta fonte é uma parcela de nossa própria constituição psíquica. Ou seja, não há como fugir, ela faz parte de nós. Então, nossa fuga é fuga de nós mesmos. “Todas as coisas que o homem busca a fim de se proteger contra ameaças oriundas das fontes de sofrimento, fazem parte da cultura”. Freud usa o seguinte argumento: “O que chamamos de nossa civilização é em grande parte responsável por nossa desgraça e que seríamos muito felizes se a abandonássemos e retornássemos às condições primitivas”.
A cultura humana é algo superficial, não faz parte da natureza. As regras, a família, o Estado, a religião, a sociedade, são criações do homem civilizado numa tentativa de conter os efeitos devastadores daquilo que ele mais anseia – o prazer de um gozo ilimitado, a plena e desconhecida felicidade que tanto o homem almeja para sair de uma condição de prótese artificial. Pois se a natureza goza, então, o homem se sente, também, no direito de desfrutar o impossível, sendo que ele é uma extensão da natureza, mesmo numa condição de artificialidade.
Freud afirma: “Não nos sentimos confortáveis na civilização atual”. E ainda, “a felicidade é algo essencialmente subjetivo”. Então, cada homem, por sua vez, procura da melhor forma e de acordo com sua época, produzir o que lhe traga prazer e alivio do sofrimento. Pois não existe um estado pleno e geral de felicidade e prazer, isto seria o Caos, um estado primordial de origem. Mas se ele existiu, o homem procura ainda este efeito de estado nas coisas e na vida. Diríamos que é uma constante e, então, voltamos às vicissitudes da pulsão. Neste processo de cultura o homem aprendeu a se proteger e criou mecanismos para tolerar as suas frustrações numa sociedade que lhe impõe limites, por isso, doravante, a proteção se faz por meio de um sintoma social, onde o mesmo é fonte e alivio do sofrimento. Freud nos traz como exemplo a religião, ou como ele mesmo nos diz “a vitória do cristianismo sobre o paganismo”, ao qual supomos a neurose – a estrutura ou enfermidade neurótica como uma forma de fuga da sociedade que faz o homem sofrer. Na impossibilidade de tolerar a frustração cultural ele retorna para aquilo que, supostamente, o realizaria na felicidade – viver na fantasia os ideais culturais.
Freud nos provoca a pensar na natureza da civilização. Então, o que é a civilização? “... a palavra civilização descreve a soma integral de realizações e regulamentos que distinguem nossas vidas das de nossos antepassados animais, e que servem a dois intuitos, a saber, o de proteger os homens contra a natureza e o de ajustar os seus relacionamentos mútuos”.
Na história da civilização o homem dominou a língua, o fogo; atravessou o oceano e conquistou novos mundos e povos; aprendeu a escrita e, assim, representou o mundo. A aquisição cultural do homem o transformou num semi-deus – uma concepção de onipotência e onisciência; Freud o chamou de Deus de Prótese. No entanto, o homem com seus ideais culturais e em seu papel de semelhante a deus, não se sentiu feliz. Não basta ser deus é preciso ser belo. Talvez possamos pensar que a civilização realmente começa quando o objetivo primário de satisfação de necessidades é abandonado. O homem civilizado reverencia a beleza, a cultura e passa a ter preocupações para além do valor prático.
O homem se serviu de toda uma gama de criações culturais para regulamentar e ordenar os relacionamentos mútuos, pois, substituiu o poder do indivíduo pelo poder de uma comunidade. Saiu da barbárie para se civilizar. “A liberdade do indivíduo não constitui um dom da civilização”. Isto quer dizer que o homem cria o Estado e as Leis para servirem de exemplo e regra a um todo maior; essas Leias passam a ser inseridas de forma natural na convivência entre os homens, com o objetivo de conter as pulsões primitivas que ainda o habitam. De qualquer forma, a ordem sempre está por um fio tênue; então, a cultura exige sublimação contínua. A limpeza, a beleza e a ordem são os primeiros indicativos da cultura civilizada. Freud, inclusive ironiza, citando o sabão como um símbolo da real civilização. Ora, a profilaxia, a higienização são movimentos de prazer e que podem reverter-se em sofrimento. A natureza conserva o estado primordial, então, consequentemente, conserva o principio de prazer, que por ora nos aventuramos a comparar com a estética e com o estado de liberdade. Nada que lembre a sujeira da morte faz o homem ser livre. A ordem estética, em nome do belo, produz um efeito de liberdade.
O homem é um ser protético e a sua liberdade também é uma prótese ou, na melhor das hipóteses, uma garantia de ilusão, pois a humanidade só entrou em relações humanas civilizadas por meio de um contrato social que conferiu ao Estado o poder de coerção. A justiça é feita exclusivamente pela comunidade dos homens, só a ela cabe fazer o que é justo, nenhum indivíduo está autorizado a fazer justiça com as próprias mãos sem a devida punição da comunidade. Liberdade, então, é uma ilusão.
Em suma, as instituições sociais são, sobre tudo, barreiras contra o assassinato, o estupro e o incesto. A vida em sociedade é como uma imposição; tais barreiras funcionam para proteger a sobrevivência da humanidade, apesar de que também geram seu mal estar... Cabe à cultura interferir no desejo dos indivíduos, suprimindo, reprimindo as necessidades pulsionais primitivas, que continuam a supurar no inconsciente e buscam constantemente uma vazão de força ilimitada.
Referências:
FREUD, Sigmund. O Mal Estar na Civilização – (1929 [1930]) v. XXI. In: ____ Edição Eletrônica das Obras Completas de Freud. RJ: Imago [200?]
GAY, Peter. Freud: Uma Vida Para Nosso Tempo. Tradução de Denise Bottmanns. SP: Companhia das Letras – 1989.
HENRIQUEZ, Eugène. Da Horda ao Estado: psicanálise do vínculo social. Tradução de Teresa Cristina Carreteiro e Jacyara Nasciutti. RJ: Jorge Zahar Editor – 1996.
MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. Tradução de Álvaro Cabral. RJ: LTC Editora, [199?] – 8º Edição.