Por: Luciana V. K. Mai
O presente trabalho é um estudo (parcial) do Caso Dora, de Freud. Objetiva levantar questões e discorrer sobre algum conceito que nos salte aos olhos. Detivemo-nos apenas na primeira parte do texto, antes de alcançar a descrição dos sonhos de Dora. Na introdução do Quadro Clínico, encontramos as descrições e conjecturas de Freud sobre Dora, sua família e os sintomas histéricos que a fizeram chegar até o seu consultório. Freud nos oferece uma espécie de biografia de Dora e das circunstâncias de sua atual condição, bem como, das circunstâncias familiares. Assim, nos inteiramos da vida e da história da paciente.
É notório dizer que no Caso Dora se faz presente os conceitos fundamentais da psicanálise, como o Recalque, as Pulsões, o Inconsciente, a Repetição, a Transferência e a Teoria dos Sonhos[1]. Todos os conceitos permeiam o Caso, de forma que podemos, inclusive, pensar densamente, a Sexualidade (Teoria da Sexualidade), o Complexo de Édipo, o Complexo de Castração e assim, discorrer sobre a estrutura histérica e a “complacência somática”, associando conceitos para culminar na histeria propriamente, com singulares características.
Observa-se, no Caso Dora, o que se poderia chamar de um malogro de Freud e, que Lacan vai discorrer inúmeras vezes em seus seminários. Aquilo que escapou a Freud seja por “preconceito de época” ou por não ter conseguido sustentar a análise de Dora por mais tempo, pois que esta o abandona após três meses de análise, é analisado por Lacan – aquilo que a estrutura histérica traz em seu discurso – o que sou? No caso, “o que é ser uma mulher?” O Caso nos remete a discutir a questão da feminilidade, tema que podemos encontrar em dois textos de Freud – um de 1931 e o outro, de 1932. Mas, para além deles, Lacan foi quem melhor elucidou ou problematizou a questão do feminino, pois para ele, “não existe um significante que diga o que é ser uma mulher”. A questão de sustentação do discurso histérico parece ser o ‘colocar-se’ (identificar-se) com a posição do Outro, para responder a demanda do que é ser (homem/mulher) de forma a assim se sustentar. Qual é o desejo da histérica? Ora, saber o que uma mulher deseja.
O que nos faz querer saber de Dora? Pensemos na fantasia e no desejo desta adolescente. Sim, uma adolescente envolvida numa trama sexual – um emaranhado de relações cuja base situa-se num quarteto amoroso. Não seria de estranhar o quão absurda é a sua história – o pai e a Srª K; Dora e o Sr K. O pai barganha com o Sr K para, em troca da filha, ter a esposa deste. O caso é implícito, feito de “inocentes intenções”, diga-se de passagem. Ambos movidos por seus desejos, não é mesmo?! Mas pensemos particularmente no desejo de Dora[2].
Primeiramente vamos aludir de que a adolescência não é uma estrutura, mas tem papel de “revalidação” dos processos infantis, ou seja, a sexualidade infantil terá um novo ideal e o sujeito uma nova posição discursiva. Para tanto citamos Freud:
Um estudo aprofundado das manifestações sexuais da infância provavelmente nos revelaria os traços essenciais da pulsão sexual, desvendaria sua evolução e nos permitiria ver como se compõe a partir de diversas fontes. (FREUD, 1905 – Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade – Cap. II v. VII – Edição Eletrônica das obras Completas de Freud).
Com a chegada da puberdade introduzem-se as mudanças que levam a vida sexual infantil a sua configuração normal definitiva. Até esse momento, a pulsão sexual era predominantemente auto-erótica; agora, encontra o objeto sexual. (FREUD, 1905 – Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade – Cap. III v. VII – Edição Eletrônica das obras Completas de Freud).
A afeição infantil pelos pais é sem dúvida o mais importante, embora não o único, dos vestígios que, reavivados na puberdade, apontam o caminho para a escolha do objeto. Outros rudimentos com essa mesma origem permitem ao homem, sempre apoiado em sua infância, desenvolver mais de uma orientação sexual e criar condições muito diversificadas para sua escolha objetal. (FREUD, 1905 – Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade – Cap. III v. VII – Edição Eletrônica das obras Completas de Freud).
Trouxemos estas citações para melhor ilustrar o caminho que percorre a sexualidade e, assim, pensarmos que Dora, achava-se em plena crise subjetivante da adolescência. Freud não estava tratando de uma mulher histérica, mas de uma adolescente (ainda assim histérica) que lidava com o seu desejo – desejo que se escrevia gradativamente como um desejo de mulher. O grande impasse na história desta paciente era identificar o seu desejo que, por momentos, pensamos estar enamorada do Sr. K. – assim insistiu Freud. Dora, na verdade, estava sim enamorada da Srª K. – e por identificação toma o Sr. K. como objeto do seu afeto, produzindo recorrentes manifestações somáticas e psíquicas – um interessante revés na interpretação: estar no lugar do masculino para responder sobre o feminino. Mas como se tornar uma mulher sem ser como um homem? No texto “A Feminilidade” de 1932[3], Freud procurou responder sobre o feminino, mas logo avisou “(...) A Psicanálise não tenta descrever o que é a mulher – seria uma tarefa difícil de cumprir – mas se empenha em descobrir como a mulher se forma, como a mulher se desenvolve desde a criança dotada de disposição bissexual.”.
Quando Freud nos fala da bissexualidade, não se trata de dois sexos ao mesmo tempo, mas de dois gozos distintos, duas maneiras de buscar a satisfação. Pois, sem um objeto que de conta da falta e considerando-se, que o desejo é insatisfatório, o que se busca é o que falta; então, para satisfazer-se parcialmente, qualquer objeto que carregue as marcas do objeto perdido, pode ocupar lugares que dêem sentido ao vazio. Assim, podemos responder a questão de como Dora desejou a Srª K. identificando-se com o Sr. K. Ela coloca-se numa posição masculina, pois quem deseja é um sujeito que não tem sexo, sendo que é um efeito de significantes.
(...) A realização da posição sexual no ser humano está ligada, nos diz Freud – e nos diz a experiência – à prova da travessia de uma relação fundamentalmente simbolizada, a do Édipo, que comporta uma posição que aliena o sujeito, isto é, o faz desejar o objeto de um outro, e possuí-lo por procuração de um outro. (...) É na medida em que a função do homem e da mulher é simbolizada, é na medida em que ela é literalmente arrancada ao domínio do imaginário para ser situada no domínio do simbólico, que se realiza toda posição sexual normal, consumada. É pela simbolização a que é submetida, como uma exigência essencial, a realização genital – que o homem se viriliza, que a mulher aceita verdadeiramente sua função feminina. (LACAN – Seminário 3 – p. 203)
Lacan nos diz ainda mais, “é na ordem do imaginário que se situa a relação de identificação ($<>a).” Assim, entendemos que, no decurso do infantil é com uma imagem de sujeito que a família se relaciona, antecipando esse sujeito. Estamos no campo dos ideais narcísicos, consequentemente, no campo dos referenciais significantes que operam através de um circuito pulsional e que vão amarrando o desejo a partir deste Outro. A imagem contém uma significação fálica composta de elementos simbólicos. Então, o que o Outro quer de mim? Aderir a uma imagem que é formadora do eu, tomar para si a imagem que é do Outro – uma morte simbólica. O que Dora fez foi, senão, identificar-se com um homem para responder sobre a sua feminilidade – e ainda identificar-se com o Sr. K como que identificar-se com o pai que, por hora, relacionava-se com a Srª K, ou seja, “a fantasia é uma identificação do sujeito com o objeto”. Pois que, a questão histérica gira em torno do pai. Embora o objeto cause desejo, quem o mantém é a fantasia e como tal só busca desejar.
Aventuramo-nos a falar do Caso Dora, tomando os estudos sobre a sexualidade e a feminilidade, um caminho longo e denso. A satisfação foi parcial, pois necessitamos de mais leituras e estudos; sentimos dificuldade, mas avançamos gradativamente. Adentramos por este viés, porque a questão do feminino e do desejo de Dora pela Srª K é o que mais marca o Caso. Então, o desafio foi posto e queremos saber mais... Queremos saber do desejo feminino. Queremos saber o que quer uma mulher...
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BIBLIOGRAFIA:
FREUD, Sigmund. Conferência XXXIII – A Feminilidade – v. XXII – 1932. Edição Eletrônica das Obras Completas de Freud. RJ: Imago [200?]
____. A Sexualidade Feminina – 1931 v. XXI. In: ____ Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Freud. RJ: Imago [200?]
____. Algumas Observações Gerais Sobre Ataques Histéricos – 1908 v. IX. In: ____ Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Freud. RJ: Imago [200?]
____. Algumas Conseqüências Psíquicas da Distinção Anatômica Entre os Sexos –1925 v. XIX. In: ____ Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Freud. RJ: Imago [200?]
____. O Inconsciente – 1915 v. XIV. In: ____ Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Freud. RJ: Imago [200?]
____. As Pulsões e suas Vicissitudes (Os Destinos das Pulsões) – 1915 v. XIV. In: ____ Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Freud. RJ: Imago [200?]
____. Além do Princípio de Prazer – 1920 v. XVIII. In:____ Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Freud. RJ: Imago [200?]
____. A Interpretação dos Sonhos – 1900 v. V, Cap. VII. In: ____ Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Freud. RJ: Imago [200?]
____. Sobre o Narcisismo: Uma Introdução – 1914 v. XIV. In: ____ Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Freud. RJ: Imago [200?]
____. O Recalque – 1915 v. XIV. In: ____ Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Freud. RJ: Imago [200?]
____. Os Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade – 1905 Cap. II v. VII. In: ____ Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Freud. RJ: Imago [200?]
____. Os Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade – 1905 Cap. III v. VII. In: ____ Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Freud. RJ: Imago [200?]
____. A Dissolução do Complexo de Édipo – 1924 v. XIX. In: ____ Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Freud. RJ: Imago [200?]
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 1: Escritos Técnicos de Freud (1953-1954) – 2º ed. – RJ: Jorge Zahar Ed. 1998.
____. O Seminário, Livro 3: As Psicoses (1955-1956) – 2º ed. – RJ: Jorge Zahar Ed. 1998.
____. O Seminário, Livro 4: A Relação de Objeto (1956-1957) – 2º ed. – RJ: Jorge Zahar Ed. 1998.
____. O Seminário, Livro 5: As Formações do Inconsciente (1957-1958) – 2º ed. – RJ: Jorge Zahar Ed. 1998.
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NOTAS:
[1] Na Interpretação do Sonho de Freud encontramos todas as bases fundamentais para falarmos de Recalque, Fantasia e Desejo. Alias, vale lembrar que o estudo do Caso Dora deveria chamar-se originalmente “Sonhos e Histeria”, pois seria este uma extensão dos estudos sobre os Sonhos. Diz-nos Freud: “(...) De onde se origina o desejo que se realiza nos sonhos? (...) Desejos são imortais como os titãs – desejos mantidos sob recalcamento são eles próprios de origem infantil, são moções inconscientes.” (FREUD – A Interpretação do Sonho 1900 – Cap. C. – Edição Eletrônica das Obras Completas de Freud).