Quadro "O Pesadelo" de Henry Fuseli (1741-1825)

* A Peste Onírica é um delírio subversivo. Postamos aqui nossas réles "produçõezinhas"; nossos momentâneos surtos de divagações em nome do Real do Simbólico e do Imaginário. Estão aqui nossos ensaios para que possamos alçar outros vôos num futuro próximo. Aproveitem os links, os materiais, as imagens, as viagens. Sorvam nossas angústias, nossas dores e masquem nossa pulsão como se fosse um chiclete borrachento com sabor de nada. Pirateiem, copiem, contribuam e comentem para que possamos alimentar nosso narcisismo projetivo. E sorvam de nossa libido, se assim desejarem.


sábado, 14 de novembro de 2009

O Louco


Por: Luciana Valquíria Kremin Mai


No Tarô de Marselha, a carta “O Louco”, é marcada pela ausência de numeração, para significar que está à margem de qualquer ordem ou sistema. As alegorias da figura mostram um homem de costas, caminhando com um bastão na mão e segurando no ombro um pau em cuja extremidade há uma sacola – simbologia comum para ilustrar um viajante, retirante – alguém que parte para o mundo desprovido de posses, ou ainda, sem lugar para ficar no mundo. O traje do Louco é de várias cores que se organizam de forma incoerente. Lembra um bufão, figura que fazia a caricatura da corte, de reis e senhores. O Louco lembra um homem solitário e errante que atravessa os campos, sendo agredido por um animal, pois ele não se preocupa com os perigos do caminho porque se sabe invulnerável e imortal, por isso mesmo exposto a todo tipo de faltas.

A representação mística desta carta fala de incoerências, impulsividade e ausência de racionalidade, perda do livre-arbítrio, passividade, inconsciência, perigo de se isolar da sociedade, entre outros auspícios, digamos, negativos, sob um ponto de vista do senso comum. Mas, três características fecham os desígnios do Louco: instinto ativo; irracionalidade e caos.

Na Renascença viu-se surgir uma nova e estranha figura ao longo dos canais flamengos e dos rios da Renânia: a Nau dos Loucos, como ilustrou Hyeronimus Boch. Já por aquela época, os loucos tinham uma existência errante. Escorraçados das grandes cidades, expulsos de suas fortificações e condenados à peregrinação, foi-se firmando o costume de confiá-los, também, aos barqueiros. Desta prática surgia a certeza de que os insanos iriam para longe o quê – nas palavras de Foucault – “os tornava prisioneiros de sua própria partida”. É o mesmo autor quem assinala o caráter simbó1ico da atitude: "A navegação entrega o homem à incerteza da sorte; nela, cada um é confiado ao seu próprio destino; todo embarque é, potencialmente, o último. É para outro mundo que parte o louco em sua barca louca; é do outro mundo que ele chega quando desembarca"[1].

A loucura, a partir do século XVI, passa a ser vista como o oposto da razão – loucura como sinônimo de irracionalidade. O Louco ultrapassou a loucura, no sentido estrito de uma preocupação ligada ao imaginário da renascença, para tornar-se um problema sócio-político-cultural e econômico. Ele passou a ser um transgressor da norma e, consequentemente, uma fonte de problemas, ligado ao coletivo/social, que presa pela moral e os bons costumes. Portanto, os loucos eram todos aqueles que, de alguma forma, transgrediam as leis da sociedade civil – vagabundos, prostitutas, agitadores, pobres, mendigos, criminosos – tratados de maneira uniforme. No mais, eram sempre aqueles que estavam a margem de um padrão considerado normal.

A partir do século XVII, a loucura perpassa por uma classificação de ordem médica, uma espécie de higienização dos costumes. O louco começa a dialogar com o médico, mas a dinâmica da exclusão ainda encontra-se presente, pois é sempre uma classificação por conta dos opostos normal/anormal, razão/desrazão. Novas práticas suscitam uma relação de cura – a loucura é uma doença que pode ser tratada, o louco é um doente que deve ser curado para poder integrar-se e cumprir seu dever de individuo, numa sociedade trabalhadora e produtora de normas.

A exclusão do diferente permeia os discursos no modo como a loucura é vista nas diferentes épocas, seja o louco um personagem da caridade religiosa ou do tipo ocioso e perturbador da ordem ou ainda, um indivíduo doente que perturba a sociedade e é incapaz de integrar-se a ela e produzir, além de representar um perigo social. É a partir desta nova sensibilidade em relação à loucura que nasce a idéia de reclusão – as casas de internação ligadas à ciência da medicina, que no século XVIII desponta e então classifica, emergindo assim, a relação da loucura com a medicina.

Iniciamos com uma pequena ilustração histórica da loucura para, agora, nos questionarmos: O que é normal? O que é patológico? A partir de dois materiais ilustrativos, um de origem literária e outro do cinema – O Alienista, de Machado de Assis e o filme Estamira, de Marcos Prado – produziremos algumas considerações. Pensemos sobre as histórias dos personagens, até onde eles nos levam e o que querem? O que é a psicopatologia? E o que é a Psicopatologia Fundamental?

De acordo com o texto de Manoel Tosta Berlinck, “O que é Psicopatologia Fundamental”, podemos nos referir, ao sofrimento do corpo e ao sofrimento da alma. “(...) Phatos não nasce no corpo, pois vem de longe e de fora. Mas passa necessariamente pelo corpo, ele brota no corpo e rege as ações humanas.” Phatos é relativo à paixão, passividade, sofrimento, passível de tirar proveito para que se transforme em experiência – um discurso sobre o sofrimento, tornando-se patológico como entendimento terapêutico. A Psicopatologia Fundamental é uma posição – uma posição de escuta do Phatos, lugar de transformação do Discursus em experiência terapêutica, ou seja, ouvir a ficção e dar conta da arqueologia do sujeito. Enquanto isso podemos entender a Psicopatologia Geral tão somente como uma classificação das morbidades de um indivíduo, com um discurso voltado às doenças, um logos que prima pelo sentido pragmático e eficaz, na luta para manter uma normalidade hegemônica e herdeira do positivismo, mas nem por isso as duas posições psicopatológicas deixem de se visitarem e relativamente se respeitarem.

Em Estamira, vemos a história de uma senhora que trabalha em um aterro sanitário no Rio de Janeiro. Ela tem 63 anos e foi diagnosticada como esquizofrênica. Estamira nos traz a sua verdade, a sua loucura, o seu Phatos. Logo, nos amparamos não menos do que em Machado de Assis e o seu Alienista. São dois discursos permeados por aquilo que nos assusta, por aquilo que Michel Foucault melhor tematizou – a arqueologia da loucura.

Num primeiro momento queremos dissecar duas palavras. Aliénus, que do latim significa pertencente a outrem, de outrem, em conexão com o grego torna-se allótrios que significa afastar, tornar estrangeiro. De acordo com o Dicionário Houaiss, ALIENADO é que ou aquele que sofre de alienação mental; louco, maluco, doido. E ainda, que ou aquele que sofre de alienação, que vive sem conhecer ou compreender os fatores sociais, políticos e culturais que o condicionam e os impulsos íntimos que o levam a agir da maneira que age. E por último, que ou aquele que, voluntariamente ou não, se mantém distanciado das realidades que o cercam; alheado. Logo, ALIENISTA é o médico especialista em doenças mentais e que diz respeito ao tratamento dos alienados mentais.

A outra palavra é ESTAMIRA. Bem, Estamira é o nome da personagem do filme, não tem uma etimologia, pois que é única: “Eu sou Estamira”. Mas queremos, apenas a título de associação pessoal, dizer que o nome Estamira nos remete à palavra ESTAMINA, que no dicionário Houaiss, significa “capacidade vital de resistência, especialmente, a manutenção por longo tempo de uma atividade ou esforço”. Estamina é uma substância produzida pelo organismo capaz de gerar resistência física. Eis, então o que nos faz, realmente, pensar em Estamira como alguém capaz de gerar capacidade vital, frente a tantas adversidades da vida. Vemos Estamira como uma sobrevivente...

Vamos procurar algumas peculiaridades nas personagens Estamira e Alienista (citarei sempre a personagem de Machado de Assis como Alienista; refutamos o nome de Simão Bacamarte). Ambos nos oferecem um estatuto da verdade.

Em Estamira, vemos o saber religioso – o delírio místico de falar/manter contato com um ser que possui um controle remoto sobre todos os seres e que a escolheu, por assim dizer, como a transmissora da verdade. Em suas palavras: “A minha missão, além de ser Estamira, é mostrar a verdade, capturar a mentira e tacar na cara”. Estamira é o testemunho de uma condição e da condição de outros homens.

No Alienista, também encontramos o estatuto da verdade – uma condição de saber, por hora, um saber da ciência que o escolheu, ou que ele escolheu – um suposto saber, governado pela razão, mas que, no entanto, passará de Alienista para alienado. Vejamos suas palavras: “A saúde da alma, é a ocupação mais digna do médico”. Segue o narrador: “A ciência tem o inefável dom de curar todas as mágoas”. O nosso médico, mergulha, inteiramente, no estudo e na prática da medicina.

É digno de nota que, a ficção do Alienista, é uma crítica à ciência da época de Machado de Assis e, claro, permanece contemporânea. No seu conto, encontramos todas as referências ao movimento antipsiquiátrico, a classificação das patologias e a higienização dos costumes sociais, o que nos faz pensar numa associação ao texto lacaniano A Ciência e a Verdade. No entanto, por mais que nos sentimos tentados, o rumo dessa “prosa”, deveras, será outro.

Voltemos à Estamira. O mais provável, é imaginar Estamira, dentro do conto machadiano, sendo avaliada pelo Alienista e encaminhada imediatamente à “casa verde”. Mas, o Alienista transforma-se numa Estamira “moderada”. E, porque o médico passa a ser o Louco? Excessos! Tanto um quanto o outro, transbordam e passam a interagir com discursos delirantes, que sustentam verdades – a verdade de cada um.

O excesso é um critério para a maneira de ser, portanto, será sempre em relação a uma ordem de normalidade que, digamos, regula a diversidade. A palavra norma está na origem do termo normal, que significa “esquadro”.

Aparentemente, se quiséssemos classificar Estamira numa nosografia psiquiátrica e, ainda, o próprio Alienista, que realmente o fez a si próprio, quando se recolheu à “casa verde”, poderíamos ler os seus sintomas e procurá-los nos manuais de transtornos mentais e classificar, ambos, como esquizofrênicos ou algo do gênero – uma estrutura psicótica – pois, a relação deles com os outros e com o mundo que os rodeia, é delirante. Mas, essa leitura, nos coloca numa posição de observador enraizado numa cultura que reconhece a realidade e o valor da doença como relação de normal/anormal, saúde/doença. Mas, também, poderíamos embarcar na Nau de Estamira e do Alienista e, juntos, contradizermos o mundo, e dizê-lo delirante, pois só nós sabemos a verdade do indizível – e, nesse “trocadilho”, solicitarmos um controle remoto para parar tudo, pois, segundo Estamira, “o trocadilho faz as pessoas viverem na ilusão, e acreditar em coisas que não existem”. É aqui que damos ouvidos à Psicanálise e à Psicopatologia Fundamental, para que possamos ouvir o testemunho de nossa protagonista Estamira, diante das violências que sofreu, mas, sobretudo, da vitalidade e poder de criação, para suportá-las. Eis o poder da palavra.

Na renascença, os loucos foram levados por barqueiros a terras distantes, para bem longe da sociedade. Para Estamira, o aterro sanitário – a sua “terra distante” – transformou-se num refúgio, longe da cidade, mas muito próximo de seus resíduos...

A legenda que aparece escrita no quadro de Boch diz, Meester snyt die Keye ras, myne name is lubbert das, que significa Mestre, extrai-me a pedra, meu nome é Lubber Das. Lubber Das era um personagem satirico da literatura holandesa que representava a estupidez.



Algumas questões que nos nortearam e que podem, sempre, suscitar produções e interlocuções:

O que é a loucura?
O que é o normal?
O que é a psicopatologia?
O que é a psicopatologia fundamental?
Quem é estamira?
Quem é o alienista?
Quem somos nós?

[1] Michel Foucault – História da Loucura. SP: Ed. Perpectiva; 1972. (p. 10 – 12)

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