Quadro "O Pesadelo" de Henry Fuseli (1741-1825)

* A Peste Onírica é um delírio subversivo. Postamos aqui nossas réles "produçõezinhas"; nossos momentâneos surtos de divagações em nome do Real do Simbólico e do Imaginário. Estão aqui nossos ensaios para que possamos alçar outros vôos num futuro próximo. Aproveitem os links, os materiais, as imagens, as viagens. Sorvam nossas angústias, nossas dores e masquem nossa pulsão como se fosse um chiclete borrachento com sabor de nada. Pirateiem, copiem, contribuam e comentem para que possamos alimentar nosso narcisismo projetivo. E sorvam de nossa libido, se assim desejarem.


sábado, 23 de janeiro de 2010

O Ranho da Subjetividade


“O próprio escrever perdeu a doçura para mim. Banalizou-se tanto, não só o acto de dar expressão a emoções como o de requintar frases, que escrevo como quem come ou bebe, com mais ou menos atenção, mas meio alheado e desinteressado, meio atento, e sem entusiasmo nem fulgor”.

(Fernando Pessoa – Livro do Desassossego)


Poderia fingir sono e sonho e, então, viver na fantasia do eterno dormir. Poderia se não fosse à insônia e os monstros do dia a me perseguir. De lá para cá não sei mais ao certo quem sou. E onde é este lá e este cá? É dentro de mim. Vivo, faz quase um ano, uma espécie de in solidum. Toda minha alma está tomada pelo mal. Por conta disso dei, ultimamente, de ler o mal do século. Ler Rimbaud com dezoito anos é uma coisa e ler Rimbaud aos trinta e poucos é bem outra. O mesmo vale para Baudelaire, meu grande mestre, meu Satã da literatura.

Tenho pronunciado a célebre estrofe das litanias: “Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria”. Quando estou andando solitária, na rua povoada de civilização, me ouço em ladainha pedindo misericórdia para Satã. Sinto-me louca, miserável e em decomposição com a vida, diria melhor, em descompasso com a vida. Desculpo-me por tudo e por todos os sofrimentos do mundo, como se eu fosse a única causa dos males que afligem os humanos. Nas noites silenciosas sento-me na varanda e fumo pensando que quero ser deus – um deus cruel que mata a todos e depois chora. Aliás, como tenho chorado... Será que lágrimas curam? Momentaneamente sim. O desejo maior é voltar ao calor uterino, pois vivo um espedaçamento narcísico, diria Freud – ferida que jamais cicatriza.

Minha melancolia é fruto... fruto. E basta dizer isso. Fruto de uma missa fúnebre. Como me apraz à alma escutar cantos fúnebres... Estou num contínuo e interminável ritual de morte. Onde o morto, quase em decomposição, anseia ser enterrado e ninguém lhe acode, pois todos permanecem fixos. Fumam, silenciam, bebem e se encaram vez que outra para ter a certeza de que permanecem todos na sala. Uns vigiam os outros e ninguém pode sair. Lá fora aves de asas oblongas circundam a casa, cães magricelas disputam o território. Pediriam um osso de braço do defunto? Dizem que cães não comem homens. Sinceramente, não sei. Só sei que homens são capazes de comer homens – a velha história da antropofagia.

Lamentemos, de mãos suadas e dadas, para eu-infeliz e para outros infelizes:
“Vita detestabilis, nunc obdurat, et tunc curat... sors immanis et inanis, rota tu volubilis, status malus, vana salus semper dissolubilis, obumbrata et velata michi quoque niteris; nunc per ludum dorsum nudum fero tui sceleris. Sors salutis et virtutis michi nunc contraria, est affectus et defectus semper in angaria”.

Incomoda-me toda esta inteligência do mundo sobre o mundo, querem curar a tudo e nos deixam mais loucos, mais sofridos. Quanto mais curam, mais doenças causam. Não quero fazer parte do mundo, quero estar alheia, se coragem não me faltasse – pois bem, eis uma fraqueza que escondo – a covardia – faria como Rimbaud, escolheria uma terra vulcânica para me esconder e sofrer, suar e sufocar... Pobre Rimbaud morreu amputado e solitário. Que roda da fortuna reserva-me o ocasio? Qual o trem que hei de pegar para encontrar deus – “Deus est anima brutorum?”

Vou agora fingir que durmo para dissipar as luzes que me ofuscam, pois já é dia e os passarinhos cantam para minha angústia. Detestáveis eles cantam... Insipientes eles cantam... Por favor, digam-me, onde está o botão para desligar tudo isso?

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