Quadro "O Pesadelo" de Henry Fuseli (1741-1825)

* A Peste Onírica é um delírio subversivo. Postamos aqui nossas réles "produçõezinhas"; nossos momentâneos surtos de divagações em nome do Real do Simbólico e do Imaginário. Estão aqui nossos ensaios para que possamos alçar outros vôos num futuro próximo. Aproveitem os links, os materiais, as imagens, as viagens. Sorvam nossas angústias, nossas dores e masquem nossa pulsão como se fosse um chiclete borrachento com sabor de nada. Pirateiem, copiem, contribuam e comentem para que possamos alimentar nosso narcisismo projetivo. E sorvam de nossa libido, se assim desejarem.


terça-feira, 30 de dezembro de 2008

AQUE TIPO DE CIÊNCIA É A PSICANÁLISE?

Alfredo Jerusalinsky
*
A descoberta freudiana do inconsciente colocou em xeque a ilusão da modernidade de poder transformar todo saber em conhecimento. Embora nascida no berço da ciência, a psicanálise acabou demonstrando a impossibilidade de formular qualquer enunciado capaz de capturar um real sem que nada venha a sobrar fora dessa redoma da linguagem.
*
Para tal demonstração a psicanálise não se apóia centralmente na evidência da vastidão inapreensível do real – o que a colocaria fora da ciência, exposta às especulações místicas – mas na condição mesma do sujeito que produz esse enunciado. Um sujeito tal que, na medida em que sua própria existência depende desse enunciado, é desse enunciado a matéria mesma que o constitui. De tal forma, o seu funcionamento não pode ser outra coisa que a lógica do discurso que, ao mesmo tempo, habita e do qual é, ele próprio, feito. Uma lógica, então, necessariamente paradoxal, já que é o sujeito mesmo quem produz a verdade que acredita descobrir.
*
Tal descoberta, produzida pela psicanálise, teve duas grandes conseqüências no campo do saber. A primeira foi o reconhecimento de que o corpo real dos humanos é regido por uma ordem simbólica que desdobra sobre esse corpo efeitos imaginários; uma ordem que prevalece sobre os automatismos neurovegetativos. Na medida em que se verifica que a condição humana desse corpo depende de que os enunciados que o simbolizam mantenham sua eficácia, a anatomia e a fisiologia perdem sua exclusividade no reino do patológico. Isto muda a leitura dos sofrimentos e estabelece os princípios de uma nova clínica. A segunda, é que, embora não constitua uma nova epistemologia (faltaria para isso ter a fé que, no método, a ciência contemporânea tem), certamente produz uma nova episteme, ou seja, um novo ponto de partida para a abertura de caminhos do saber.
*
Mais de cem anos de prática psicanalítica vieram produzir não somente o desdobramento dessas novas trilhas – nos campos da antropologia, das artes, da lingüística, da historiografia, da filosofia, das ciências jurídicas, da medicina, da psicologia, da literatura, entre outros – mas também um certo saldo de conhecimentos, emergidos de sua prática de leitura dos enunciados desde o vértice da enunciação. Dito de outro modo, leitura do saber não-sabido próprio do inconsciente.
*
Porém, tal perspectiva exigiu do operador – o psicanalista, no caso – situar e definir o referente que permitisse o deciframento, a decriptação, a interpretação, em suma, desse saber entredito numa linguagem cuja lógica não se equivale com a da consciência. Isto introduziu uma condição incontornável: era imperioso tomar uma decisão, fazer uma escolha que, embora seja um momento comum a todas as ciências, não tem – na psicanálise – a contrapartida que tem em todas elas da configuração imaginária dos enunciados como universais.
*
O ordenamento acadêmico, precisamente, se rege por esses universais, que permitem supor os enunciados que se transmitem como certezas. Do mesmo modo que a regulamentação de profissões se apóia na idéia de uma garantia de saber, como se tal coisa pudesse se constituir simplesmente por obra de uma letra jurídica. As dificuldades da conjugação da prática analítica com a prática universitária, tanto como sua resistência a ser arregimentada por qualquer aparelho estatal, residem em tal contraposição de princípios e postulados.
*
Mas sua vocação pelas “rebarbas” dos enunciados – não podia ser de outra maneira – teve e tem conseqüências também para formulação de sua própria teoria. De fato, a formação – sendo ela sempre a do inconsciente – conduz os analistas a tomar sempre o que excede o enunciado do outro, com o qual ele não faz mais do que cumprir com seu papel de analista. O que em qualquer outra prática teórica constituiria uma posição gratuitamente implicante, aproveitando uma série de banalidades para questionar o trabalho do colega, no caso da psicanálise constitui a trilha mais apropriada – a via régia – da elaboração teórica. A multiplicidade de enfoques então, em lugar de desmentir, contribui para confirmar o fundamento de sua prática.
*
O risco do ecletismo se faz imediatamente presente diante de uma atividade científica assim delineada. Facilmente o conjunto das proposições derivadas de tal forma de trabalhar nas bordas do saber humano, pode tomar a aparência de uma torre de Babel. Eis ali que se faz necessário estabelecer a condição da prova que toda proposição deve passar. O rigor neste caso consiste em exigir a prova da interpretação. Isso quer dizer que qualquer formulação neste âmbito corre o risco (ou talvez devamos dizer a sorte) de, ela mesma, ser interpretada. Tal exigência, por sinal, não coloca as coisas no caminho de uma coexistência pacífica das diferentes versões. Mas, na medida em que a psicanálise pretenda se manter dentro do terreno da ciência, pela condição imposta pela sua própria descoberta, terá que sacrificar a paz para se aproximar à verdade. De outro modo, a psicanálise não seria outra coisa que a prática de uma opinião.
*
Mal faria a psicanálise se, com o pretexto da exigência de um rigor, pretendesse universalizar suas próprias proposições. Acabaria apagando com o cotovelo o que tanto a mão resistiu de – finalmente – escrever.
*

Nenhum comentário:

Postar um comentário

AddThis