Quadro "O Pesadelo" de Henry Fuseli (1741-1825)

* A Peste Onírica é um delírio subversivo. Postamos aqui nossas réles "produçõezinhas"; nossos momentâneos surtos de divagações em nome do Real do Simbólico e do Imaginário. Estão aqui nossos ensaios para que possamos alçar outros vôos num futuro próximo. Aproveitem os links, os materiais, as imagens, as viagens. Sorvam nossas angústias, nossas dores e masquem nossa pulsão como se fosse um chiclete borrachento com sabor de nada. Pirateiem, copiem, contribuam e comentem para que possamos alimentar nosso narcisismo projetivo. E sorvam de nossa libido, se assim desejarem.


quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Onde Estivestes de Noite



Meu desânimo parece incompreensível... Uma onda de desassossego, seguido de pensamentos repetitivos. Um suspiro... e faço força para escrever, pensar no nada, respirar... Esta semana encontrei um livro de Lygia Fagundes Telles. Um livro barbada, pois, comprei pela bagatela de 3 reais. Nem acreditei, mas foi a melhor coisa que me aconteceu. Consegui ler um dos contos, chamado "Onde Estiveste de Noite?" É um relato de um momento singular da autora, uma lembrança de uma lembrança - Lembrança de Clarice Lispector. Não tenho vontade de escrever sobre a coisa, nem tão pouco, dizer nada de nada, por isso, copiei o conto de Clarice e colei ele aqui. Bem, faltou o conto de Lygia, que, na verdade, é o protagonista, mas me desculpem, agora não, depois eu procuro. Quem tiver força vai ler, quem tiver vontade vai usufruir, quem... quem... quem... Não importa. Tudo fragmentado neste momento... Ah, o conto de Clarice tem o mesmo nome, porém, não faz ponto de interrogação. Sutil detalhe compreensível. 

***

Onde Estivestes de Noite
(Clarice Lispector)

A noite era uma possibilidade excepcional. Em plena noite fechada de um verão escaldante um galo soltou seu grito fora de hora e uma só vez para alertar o início da subida pela montanha. A multidão embaixo aguardava em silêncio.
Ele-ela já estava presente no alto da montanha, e ela estava personalizada no ele e o ele estava personalizado no ela. A mistura andrógina criava um ser tão terrivelmente belo, tão horrorosamente estupefaciente que os participantes não poderiam olhá-lo de uma só vez: assim como uma pessoa vai pouco a pouco se habituando ao escuro e aos poucos enxergando. Aos poucos enxergavam o Ela-ele e quando o Ele-ela lhes aparecia com uma claridade que emanava dela-dele, eles paralisados pelo que é Belo diriam: "Ah, Ah". Era uma exclamação que era permitida no silêncio da noite. Olhavam a assustadora beleza e seu perigo. Mas eles haviam vindo exatamente para sofrer o perigo.
[...]
Aquela que de noite gritava "estou em espera, em espera", de manhã, toda desgrenhada disse para o leite na leiteira que estava no fogo:
- Eu te pego, seu porcaria! Quer ver se tu te mancas e ferves na minha cara, minha vida é esperar. É sabido que se eu desviar um instante o olhar do leite, esse desgraçado vai aproveitar para ferver e entornar. Como a morte que vem quando não se espera.
Ela esperou, esperou e o leite não fervia. Então, desligou o gás.
No céu o mais leve arco-íris: era o anúncio. A manhã como uma ovelha branca. Pomba branca era a profecia. Manjedoura. Segredo. A manhã preestabelecida. Ave-Maria, gratia plena, dominus tecum. Benedicta tu in mulieribus et benedictum frutus ventri tui Jesus. Sancta Maria Mater Dei ora pro nobis pecatoribus. Nunca et ora nostrae morte Amem.
Padre Jacinto ergueu com as duas mãos a taça de cristal que contém o sangue escarlate de Cristo. Eta, vinho bom. E uma flor nasceu. Um flor leve, rósea, com perfume de Deus. Ele-ela há muito sumira do ar. A manhã estava límpida como coisa recém-lavada.
AMÉM

Os fiéis distraídos fizeram o sinal da Cruz.

AMÉM
DEUS
FIM


Epílogo:
Tudo o que escrevi é verdade e existe. Existe uma mente universal que me guiou. Onde estivestes de noite? Ninguém sabe. Não tentes responder - pelo amor de Deus. Não quero saber da resposta. Adeus. A-Deus.

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