* Este texto é um plágio, uma costura, um copyleft... (Um resumo quem sabe, só para amenizar. O objetivo e conhecer, falar e fazer a conversa).
A Modernidade, em termos teóricos, significa ruptura, negatividade, crítica. Por outro lado, é sinônimo de progresso tecnológico, fixação da ética do consumo, do ideal de conforto.
Uma significativa vertente da poesia moderna é aquela que faz a sua opção deliberada pelo mal. Pensar sobre o significado desta escolha e de sua estetização implica percorrer os caminhos teóricos da modernidade e do mal; implica também, principalmente, penetrar na "maldade" dos poemas.
A poesia constitui uma forma de resistência em relação à desumanizadora proposta de vida do sistema capitalista e o faz de diversas maneiras, tanto voltando-se para a infância ou para o inconsciente, como dirigindo-se especificamente para o social. A poesia como resistência não consegue integrar-se aos discursos correntes da sociedade. Sua maneira de ser a caracteriza como tal: símbolo fechado, hermetismo, autodesarticulação, silêncio.
Um motivo sempre presente na literatura da modernidade é o das multidões, descritas, geralmente, como empecilho, no meio de quem é necessário abrir caminho para poder passar. Há os encontrões, a irritação, os movimentos desordenados e os gestos de quem está só, exatamente porque há muitas pessoas ao seu redor.
Enfim, o desacerto do homem num meio urbano superpopuloso, conturbado, poluído, a perda da identidade na multidão, o labirinto, a pressa, o flâneur constituem assuntos fundamentais para a estética moderna.
O pensamento benjaminiano sobre modernidade demonstra que ela se vincula a uma série de fatos, acontecimentos e realizações materiais que modificam substancialmente o modo de ser do homem e do meio, bem como as relações entre os homens. A Literatura e a Arte, ao mesmo tempo em que captam essa nova realidade e a expressam, também são influenciadas por ela.
O moderno não é a tradição, mas outra tradição; a modernidade nunca é ela mesma, é sempre outra e não é caracterizada unicamente pela novidade, mas pela heterogeneidade, pluralidade, estranheza radical; o moderno nega o passado, é uma paixão crítica que culmina com a negação de si mesma.
Em Baudelaire, o mais ilustre representante da arte pela arte, vida e obra testemunham profunda abjeção em relação ao mundo em que vivia. É certo, todavia, que ele era um homem urbano, sua sensibilidade se alimentava daquele turbilhão e era dali que sua inspiração brotava. Embora abominasse a ética burguesa, foi o apogeu das conquistas dessa classe que forneceu o material básico para sua obra.
Baudelaire execrava o progresso, o trabalho, a democracia burguesa, o comércio, os jornais... Desses chega a dizer:
"Os jornais, sem exceção, da primeira à última linha, não passam dum tecido de horrores. Guerras, crimes, roubos, impudícias, torturas, crimes... uma embriaguês de atrocidade universal. (...) Não compreendo que uma mão pura possa tocar num jornal sem uma convulsão de repugnância" (1981, p. 133).
A modernidade conheceu os poetas Baudelaire, Lautréamont, Verlaine, Rimbaud, Poe, alguns dos mais dignos estetas do mal.
Que razões os impeliram a buscar no mal a fonte, por excelência, da inspiração poética?
O que é o mal?
"Por mim afirmo: a volúpia única e suprema do amor consiste na certeza de fazer o mal. E o homem e a mulher sabem, de nascença, que no mal se encontra toda a volúpia "(BAUDELAIRE, 1981, p. 17).
O mal, de um ponto de vista filosófico e teológico, apresenta certa dificuldade de explicitação devido à impossibilidade de, num sistema, existir a contradição. Se Deus é onipotente e é bom e o mal existe, não há como solucionar tal problema.
Os fatos e fenômenos catalogados como mal são: pecado, sofrimento, morte, adversidades naturais, doenças... Ricoeur adverte que não se pode catalogar fenômenos tão díspares numa mesma denominação e distingue o mal cometido do mal moral ou físico, sofrido, reconhecendo, no entanto, que as fronteiras entre ambos não são absolutamente divisáveis; o pecado entra na linha do mal cometido, mas acaba penetrando na outra, a do mal sofrido, na medida em que o pecador se torna vítima, a partir da punição.
A questão fundamental é: de onde vem o mal? O mito já a enuncia através da presença da lamentação: até quando? por quê? A bíblia atribui o mal a uma culpa originária: o pecado original. Nos grandes sistemas filosóficos do ocidente o mal constitui um desafio e uma impossibilidade de solução.
A literatura, apesar de não sanar, de não evitar o mal, com ele se relaciona mais livremente, pois o princípio de ambigüidade que a rege às vezes demonstra que o mal não é mal; além disso, no plano estético, a existência e combinação de bem e mal concorrem para a harmonia de conjunto.
A despeito de não poder banir o mal nem o seu conseqüente grito de lamentação, a literatura admite-o no seu seio, na natureza humana, como prova, talvez, da ilusão que é o sonho humano de ser feliz. A literatura explica e abarca a existência do mal como o contraponto do bem, algo dado, presente na natureza.
Poe escreveu vários textos em que trata da existência do mal e está convencido de que os impulsos do mal são os "prima mobilia" da alma humana. É uma propensão primitiva irredutível, um sentimento radical que é negligenciado pela pura arrogância da razão. Segundo Poe, o homem lógico ou intelectual, em vez do homem inteligente ou observador, se pôs a imaginar desígnios, a ditar propósitos a Deus. Dessa forma, tendo sido criado antes, o homem se conscientiza dos aspectos que são aquilo que a divindade pretendia que fosse, mas não é. Seria muito mais sábio classificar e ver aquilo que o homem efetivamente é.
Para Poe, assim como para Dostoiewski, existe no ser humano um princípio de perversidade que é parte dele, ou, de outra forma, como explicar, por exemplo, a irreversível atração do abismo?
A teologia da Cruz coincide, em última análise, com o budismo: amar a Deus por nada, a suprema purificação.
Em literatura, a modernidade forneceu as condições históricas para que o homem tomasse consciência do mal, penetrasse nos seus abismos. Em autores como Poe, Tolstói e Dostoiewski, existe a expiação do mal.
BAUDELAIRE E AUGUSTO DOS ANJOS: POETAS DO MAL
No plano da teologia cristã, as idéias de bem e de mal estão personificadas em Deus e Diabo. Deus é bem e Diabo é mal, porque é revolta, desobediência, múltiplas possibilidades de inversão da ordem, caminho de liberdade.
No poema "As Litanias de Satã", Baudelaire inverte o quadro cristão referente à veneração. As litanias são a forma erudita das ladainhas: preces, orações dirigidas aos santos e à Virgem. A repetição, em coro, tem por fim solicitar a piedade e a intervenção dos santos e da Virgem, junto ao Deus supremo, tendo em vista o estado de pecado e desolação da condição humana. As litanias são uma espécie de louvor e reconhecimento do poder desses entes sobrenaturais que privam com a divindade.
Ora, Baudelaire, em vez de dirigir suas litanias aos entes que estão do lado do bem, dirige-se a Satã, a encarnação do mal. Revertendo o quadro da teologia cristã, o poeta mostra que o mal não está onde está, embora, continue existindo. O poema se apresenta como litania tradicional, inclusive com a forma fixa da repetição – tem piedade – "o Satan, prends pitié de ma longue misère!" É a enunciação elogiosa de Satã que está no lugar de Deus, é Deus aquele que tem o poder de socorrer os humanos na sua longa miséria. Já, de início, é descrito como o mais belo e sábio dos anjos, um deus traído e privado dos altares, dos louvores. Poderosa força habita Satã, ressurgindo sempre apesar da força contrária; conhece o interior do ser humano, suas angústias e a elas dá alento como curandeiro (guérisseur); não faz distinções sociais; o leproso e o pária são coisas de Satã; esperança, morte, loucura, desvario também o são. O proscrito, o desterrado, o inventor, o enforcado, o bêbado (a quem protege) pertencem, igualmente, ao reino de Satã. Além de tudo, é seu olhar que "desvela os fundos arsenais onde sepulto dorme o povo dos metais". Na oração final, a enunciação de Satã se completa: é aquele que pode proporcionar um outro conhecimento, um outro saber sobre o mundo e o ser, é a árvore da ciência que o poeta deseja alcançar.
O poema situa Satã onde ele realmente existe: no próprio homem. A opção de Baudelaire é pelo lado satânico do ser: esse lado seria o mal.
Impossível deixar de relacionar a opção de Baudelaire pelo mal e o impulso fáustico, no sentido da tradição mais significativa do mito de Fausto. O poeta opta pelo mal num legítimo impulso fáustico e ali reconhece a possibilidade do conhecimento abissal e de realização do desejo titânico de superação dos próprios limites. Baudelaire, o arquétipo do poeta, como é tido pela tradição cultural, é um fáustico e sua obra testemunha essa escolha.
O poeta brasileiro Augusto dos Anjos é um poeta-filosófico do mal; seus versos estão permeados de túmulos, vermes, podridão, doença, morte; toda a sua obra poética é uma reiterada tentativa de explicação do mal, de exacerbação da condição perecível de tudo o que é vivo; o mal, aqui, relaciona-se ao que é inerente à matéria, à força que a induz a transformar-se, decompor-se, deixar de ser uma forma para ser outra inferior. É o mal sofrido da visão de Ricoeur, própria da dor, das perdas irreparáveis, da condição mortal do ser, do homem como vítima de uma poderosa força destruidora.
O mistério da morte lenta e incondicional constitui o motivo poético tornado obsessão, tormento da consciência que o percebe, mas nada pode fazer contra seu frenético domínio. Em geral não há alívio na poesia de Augusto dos Anjos para essa dor implacável. Ela se expressa pelo sentimento de revolta, de melancolia, de pessimismo desolador:
"Eu luto contra a universal grandesa
Na mais terrível desesperação
é a lucta, é o prelio enorme, é a rebelião
Da creatura contra a Natureza!" (REIS, 1977, p. 140)
"Melancholia! Estende-me a tu'aza!
És a árvore em que devo reclinar-me..." (p. 142)
Octávio Paz refere-se, na obra Os filhos do barro, ao fato de os poetas, em geral, serem religiosos, mas cada qual inventa, de certa forma, sua religião, suas crenças, seus mitos, principalmente depois da morte de Deus. Porém, no centro dessa diversidade de sistemas poéticos é visível uma crença comum, verdadeira religião da poesia moderna, do Romantismo ao Surrealismo: a crença na correspondência entre todos os seres e os mundos. Tal fato é anterior ao Cristianismo, chega ao século XIX e sobreviverá, inclusive, ao cientificismo: é a analogia, ponto de união da poesia de todos os tempos.
Se há uma "moral" em relação à abordagem do mal na literatura da modernidade, considerando a obra de Baudelaire ou mesmo a de outros poetas, ela consiste no esforço deliberado e absoluto de conhecer o mal, penetrar nos seus meandros e tomar consciência de que existe. O poeta realiza o pacto com o mal para conhecê-lo profundamente, em última instância, para superá-lo.
Do mal também jorra uma fonte de prazer e os poetas que nela imergiram, certamente não ficaram imunes ao seu fascínio.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAUDELAIRE, Charles. Meu coração desnudado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
______. As flores do mal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989.
BOSI, Alfredo. Poesia resistência. In: -. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix. 1990. p. 139-92.
HEGEL. Estética: o belo artístico ou o ideal. Lisboa: Guimaraens Editores, 1983.
LAUTRÉAMONT. Cantos de Maldoror. Lisboa: Fenda Edições, 1988.
PAZ, Octávio. Os filhos do barro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
REIS, Zenir Campos. Augusto dos Anjos: poesia e prosa. São Paulo: Atica, 1977.
RICOEUR, Paul. O mal: um desafio à filosofia e à teologia. Campinas: Papiros, 1988.
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Abaixa:
Charles Baudelaire - As Flores do Mal:
http://www.4shared.com/file/6074930/51862916/Charles_Baudelaire_-_As_Flores_do_Mal.html?s=1
*Texto na Integra:
http://w3.ufsm.br/revistaletras/artigos_r1/revista1_2.pdf
Um comentário:
Excelente blog, muito elucidativo. Parabéns.
Augusto
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