*Luciana V. K. Mai
Louco, sim, louco, porque quis grandeza
Qual a Sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o real está
Ficou meu ser que houve, não o que há.
Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nela ia.
Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?
- Fernando Pessoa -
No Tarô de Marselha, a carta “O Louco”, é marcada pela ausência de numeração, para significar que está à margem de qualquer ordem ou sistema. As alegorias da figura mostram um homem de costas, caminhando com um bastão na mão e segurando no ombro um pau em cuja extremidade há uma sacola – simbologia comum para ilustrar um viajante, retirante – alguém que parte para o mundo desprovido de posses, ou ainda, sem lugar para ficar no mundo. O traje do Louco é de várias cores que se organizam de forma incoerente. Lembra um bufão, figura que fazia a caricatura da corte, de reis e senhores. O Louco lembra um homem solitário e errante que atravessa os campos, sendo agredido por um animal, pois ele não se preocupa com os perigos do caminho porque se sabe invulnerável e imortal, por isso mesmo exposto a todo tipo de faltas.
A representação mística desta carta fala de incoerências, impulsividade e ausência de racionalidade, perda do livre-arbítrio, passividade, inconsciência, perigo de se isolar da sociedade, entre outros auspícios, digamos, negativos, sob um ponto de vista do senso comum. Mas, três características fecham os desígnios do Louco: instinto ativo; irracionalidade e caos.
Na Renascença viu-se surgir uma nova e estranha figura ao longo dos canais flamengos e dos rios da Renânia: a Nau dos Loucos, como ilustrou Hyeronimus Boch. Já por aquela época, os loucos tinham uma existência errante. Escorraçados das grandes cidades, expulsos de suas fortificações e condenados à peregrinação, foi-se firmando o costume de confiá-los, também, aos barqueiros. Desta prática surgia a certeza de que os insanos iriam para longe o quê – nas palavras de Foucault – “os tornava prisioneiros de sua própria partida”. É o mesmo autor quem assinala o caráter simbó1ico da atitude: "A navegação entrega o homem à incerteza da sorte; nela, cada um é confiado ao seu próprio destino; todo embarque é, potencialmente, o último. É para outro mundo que parte o louco em sua barca louca; é do outro mundo que ele chega quando desembarca" .
A loucura, a partir do século XVI, passa a ser vista como o oposto da razão – loucura como sinônimo de irracionalidade. O Louco ultrapassou a loucura, no sentido estrito de uma preocupação ligada ao imaginário da renascença, para tornar-se um problema sócio-político-cultural e econômico. Ele passou a ser um transgressor da norma e, consequentemente, uma fonte de problemas, ligado ao coletivo/social, preso pela moral e os bons costumes. Portanto, os loucos eram todos aqueles que, de alguma forma, transgrediam as leis da sociedade civil – vagabundos, prostitutas, agitadores, pobres, mendigos, criminosos – e eram tratados de maneira uniforme. No mais, eram sempre aqueles que estavam a margem de um padrão considerado normal.
A partir do século XVII, a loucura perpassa por uma classificação de ordem médica, uma espécie de higienização dos costumes. O louco começa a dialogar com o médico, mas a dinâmica da exclusão ainda encontra-se presente, pois é sempre uma classificação por conta dos opostos normal/anormal, razão/desrazão. Novas práticas suscitam uma relação de cura – a loucura é uma doença que pode ser tratada, o louco é um doente que deve ser curado para poder integrar-se e cumprir seu dever de individuo, numa sociedade trabalhadora e produtora de normas – uma sociedade sob os auspícios da neurose.
A exclusão do diferente permeia os discursos no modo como a loucura é vista nas diferentes épocas, seja o louco um personagem da caridade religiosa ou do tipo ocioso e perturbador da ordem ou ainda, um indivíduo doente que perturba a sociedade e é incapaz de integrar-se a ela e produzir, além de representar um perigo social. É a partir desta nova sensibilidade em relação à loucura que nasce a idéia de reclusão – as casas de internação ligadas à ciência da medicina, que no século XVIII desponta e então classifica, emergindo assim, a relação da loucura com a medicina.
Iniciamos com uma pequena ilustração histórica da loucura na sociedade moderna. Neste nosso trabalho abordaremos um pouco da história da saúde mental na contemporaneidade, para falarmos do Movimento Antimanicomial e a Reforma Psiquiátrica. Nosso objetivo, a princípio, é pensar esse tema no contexto das políticas públicas no Brasil; para tanto, nos municiamos de textos pertinentes ao tema e, por fim, do filme O Solista.
O processo decorrente da Reforma Psiquiátrica foi o Movimento Antimanicomial, que teve início na década de 70 (no Brasil), e definida pela Lei 10.216 de 2001, como diretriz de reformulação do modelo de Atenção à Saúde Mental, que transferiu o ponto principal do tratamento, para a Rede de Atenção Psicossocial, estruturada em unidades de serviços comunitários e abertos. A reforma psiquiátrica teve como objetivo modificar o sistema de tratamento clínico da doença mental, eliminando gradualmente a internação como forma de exclusão social. Além disso, objetivou a desativação gradual dos manicômios e a promoção da inclusão social daqueles que sofrem de transtornos mentais.
Neste processo histórico-social de mudança ético-política em relação ao louco no sentido deste afirmar-se como sujeito de direitos e de desejos, foram-se estruturando movimentos, tais como os movimentos de portadores de sofrimento psíquico, de trabalhadores de saúde mental, de familiares e outros em várias partes do mundo. Exigiram-se mudanças em legislações, criaram-se leis e declarações de direitos humanos. Questionou-se o lugar dos profissionais de saúde, os possíveis modos de intervenção e inovações teóricas, provenientes de diversos campos do conhecimento, os quais contribuíram na desconstrução de práticas na área de saúde mental. Foram desdobramentos que permitiram um novo olhar sobre a doença – um ‘repensar’ o lugar do sujeito-objeto e a posição do profissional de saúde, principalmente, quanto à psicopatologia, ligada à exclusão social.
Mas, afinal, o que é a antipsiquiatria e quais são suas origens? O movimento antipsiquiatrico surge na década de 50 e assim foi denominado por um grupo de psiquiatras britânicos. O movimento estava em consonância com as ebulições sócio- políticas-econômicas-culturais da época. Não só lutavam contra os eletrochoques e restrições de liberdade infringidas aos doentes mentais como também contra os princípios nos quais se assentavam toda a medicina mental, como a distinção entre louco e normal.
Na busca das origens do movimento podemos encontrar, por exemplo, a luta contra os muros manicomiais, ou seja, a privação de liberdade; além disso, outras lutas sociais anti-repressivas agregaram-se, tais como, o movimento estudantil, os movimentos ecologistas e os esquerdistas, que reivindicavam um mundo melhor e mais livre. Poderíamos dizer que foram movimentos utópicos que produziram mudanças no pensamento sobre a saúde mental – uma dimensão utópica que deu força e matiz para desencadear mudanças. Além destes desdobramentos, um último componente se fez particularmente presente e igualmente, se não mais, importante – a filosofia de Sartre que prenunciava um humanismo libertário – junto aos quais, o Movimento Surrealista e o Maio de 68 (o Maio francês).
Neste contexto histórico, pensando no Brasil, os hospitais psiquiátricos surgiram no final do século XIX, profundamente influenciados pela psiquiatria francesa e pelo tratamento moral. O primeiro foi o Asilo Pedro II, no Rio de Janeiro fundado em 1853. O Hospício São Pedro de Porto Alegre, hoje Hospital Psiquiátrico São Pedro (HPSP), foi inaugurado em 1884. Os doentes mentais constituíam uma população específica, com perda de sua autonomia e por isso, vulnerável e muitos em situação de extremo abandono.
A antipsiquiatria, se pensada na contemporaneidade, não desapareceu; mas se transformou e se disseminou, possibilitando emergirem novas iniciativas e novas políticas públicas, além da continuidade da luta antimanicomial, pois os locais de internação ainda existem. É importante fazer a ressalva de que não é a extinção de hospitais psiquiátricos que, necessariamente, se desejou através das lutas, mas um novo olhar para o doente mental; um novo olhar sobre a doença, ou seja, a inclusão do doente mental ao invés da clausura ou do isolamento social.
Uma das principais contribuições da antipsiquiatria foi a discussão sobre o normal e patológico. Sob este ponto, quando nos referimos ao filme O Solista, podemos abrir um longo debate. Podemos abordar a questão do personagem Nathaniel e sua solidão e fazer um contra ponto com o personagem do jornalista que, por ironia, tenta salvar o psicótico de sua doença. Mas queremos pensar, justamente, na nossa normalidade cotidiana que alcança níveis de doença, enquanto que o Solista, dentro de sua loucura, não faz outra coisa senão, encontrar a saúde através de sua solidão artística ou delírio. No entanto, para nós, um doente que precisa ser curado.
Bem, se pensarmos na “loucura” da vida cotidiana, no tempo que nos consome, nas rodovias cheias de carros que vão e que vem num ritmo neurótico, em nossas casas e apartamentos solitários; na família distante e na vida estressante do trabalho e do consumo, poderíamos supor ser tudo isto um referencial de normalidade? Lembramos que podemos nos referir ao sofrimento do corpo e ao sofrimento da alma. “(...) Phatos não nasce no corpo, pois vem de longe e de fora. Mas passa necessariamente pelo corpo, ele brota no corpo e rege as ações humanas.” Phatos é relativo à paixão, à passividade, ao sofrimento; todas, situações em que se pode tirar proveito, para que se transformem em experiência – um discurso terapêutico sobre o sofrimento.
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