Quadro "O Pesadelo" de Henry Fuseli (1741-1825)

* A Peste Onírica é um delírio subversivo. Postamos aqui nossas réles "produçõezinhas"; nossos momentâneos surtos de divagações em nome do Real do Simbólico e do Imaginário. Estão aqui nossos ensaios para que possamos alçar outros vôos num futuro próximo. Aproveitem os links, os materiais, as imagens, as viagens. Sorvam nossas angústias, nossas dores e masquem nossa pulsão como se fosse um chiclete borrachento com sabor de nada. Pirateiem, copiem, contribuam e comentem para que possamos alimentar nosso narcisismo projetivo. E sorvam de nossa libido, se assim desejarem.


segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Pierre Rivière:



O jovem camponês francês, chamado Pierre Rivière, nasceu na comuna de Courvaudon e habitou em Aunay, preencheu as notícias de jornais e folhetins de 1835, causando repulsa e julgamento da opinião pública, aflorando a associação entre o trabalho jurídico e o psiquiátrico: Pierre Rivière que em 3 de junho de 1835, aos vinte anos, assassinou a golpes de foice sua mãe grávida de sete meses, Marie Anne Victorie; sua irmã de 18 anos Victorie Rivière, e seu irmão de sete anos, Jules Rivière.

Na busca pela motivação e justificação de tal crime de parricídio e fratricídio, um mosaico de interpretações e verdades foram se construindo à margem do texto e do ato do sujeito confesso. O livro intitulado Moi Pierre Rivière, ayant egorgé na mère, ma soeur et mon frère (1982) foi produzido pelo trabalho de uma equipe de pesquisadores, no Collège de France, sob a coordenação de Michel Foucault em 1973. O livro apresenta um conjunto notícias de jornais, testemunhos, interrogatórios, laudos médicos e uma gama de diferentes discursos que “permitem decifrar às relações de poder, de dominação e de luta dentro das quais os discursos se estabelecem e funcionam.

Assim começava o relato, por Pierre Rivière, do sucedido a 3 de Junho de 1835:

"Eu, Pierre Rivière, que degolei a minha mãe, a minha irmã e o meu irmão, e querendo dar a conhecer quais são os motivos que me levaram a cometer este acto, escrevi toda a vida que o meu pai e a minha mãe viveram juntos durante o seu casamento. Fui testemunha da maior parte dos factos, e que estão escritos no fim desta história (…)"

"Tomei pois essa decisão terrível, resolvi-me a matar os três; as duas primeiras porque estavam de acordo em fazer sofrer o meu pai, para o menino tinha duas razões, uma porque ele gostava da minha mãe e da minha irmã e outra porque eu receava que se matasse apenas as duas, o meu pai apesar de ficar horrorizado me lamentasse quando soubesse que eu morrera por ele, eu sabia que ele gostava desse filho que era inteligente, e pensava que ele ficaria de tal modo horrorizado comigo que exultaria com a minha morte e que assim, livre de remorsos, viveria mais feliz".
 
Mesmo recebendo o perdão do Rei (contra a pena de morte), o jovem Pierre se suicida na prisão.
 
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BAIXAR LIVRO:
Eu, Pierre Rivière, que degolei a minha Mãe, a minha Irmã e o meu Irmão - Michel Foucault.

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BAIXAR FILME:

Moi, Pierre Rivière, ayant égorgé ma mère, ma soeur et mon frère... (1976)

http://www27.zippyshare.com/v/12168723/file.html

http://www.watchthisfree.com/movies/1976/moi-pierre-riviere-ayant-egorge-ma-mere-ma-soeur-et-mon-frere/download/




(Pierre inventava palavras, fabricava objetos, queria construir uma charrete automática, queria aprender italiano e alemão, sabia passagens completas da Bíblia, sabia escrever de modo razoável e, até, poético), sofrido (a relação conturbada entre sua mãe – perversa –  e seu pai – frágil fazia a família viver em constante conflito; ele atribui sua ação a uma tentativa de libertar seu pai das loucuras de sua mãe). Pierre cometia ações que traduziam certo desequilíbrio (ria e conversava sozinho nos campos, maltratava animais por prazer, corria atrás das crianças da vila com uma foice dizendo que ia cortar seus joelhos, jogá-las no poço,  dizia ver o diabo e fadas, dizia que Deus conversava com ele).

O julgamento de Pierre Rivière representou a primeira vez em que a ciência médica e a Lei se cruzaram. Mais ainda: de um lado, havia a sociedade que, para aceitar a monstruosidade do crime, quis explicá-lo através da loucura, da alienação mental e da imbecilidade do assassino. De outro, Pierre Riviére, cujas memórias fogem completamente das explicações racionais em voga.


Assistir online:





domingo, 19 de setembro de 2010

Camille Claudel


Nos últimos meses Camille não sai do meu pensamento, então resolvi sublima-lá, postando coisas, lendo e falando sem compromisso.

Algumas coisas para usufruir:

* BAIXAR: REVISTA DA ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE N° 17 - Novembro – 1999 - NEUROSE OBSESSIVA.

* BAIXAR:  Filme Camille Claudel:


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Segue um resumo Biográfico:

Camille Claudel, Aisne, 8 de dezembro de 1864 — Paris, 19 de outubro de 1943).

Camille Claudel nasceu um ano e três meses após a morte prematura, com 15 dias, de seu irmão mais velho Charles Henri. Sua mãe Louise permanece enlutada para o resto de seus dias e “nunca beijou um de seus outros três filhos.” A última carta de Camille escrita depois de vinte e cinco anos de internação e dirigida ao irmão Paul Claudel é ainda um apelo a um lugar no desejo da mãe, eterna enlutada. Ela escreve: “eu penso sempre em nossa querida mamãe. Nunca mais a vi depois que vocês tomaram a funesta decisão de me enviar a um asilo de alienados. Eu penso no bonito retrato que fiz dela em nosso jardim. Os grandes olhos onde se lia a dor secreta, o espírito de resignação... suas mãos cruzadas sobre os joelhos em abnegação completa: tudo indicava a modéstia e o sentimento de dever em excesso, era bem a nossa pobre mãe.” Louise, a própria mãe de Camille destruiu este retrato após internar a filha, cujos endereçamentos lhe eram insuportáveis.

Desde o seu nascimento Camille foi mal acolhida por sua mãe que esperava um menino para repor a perda do filho. Camille, a menina decepciona e é batizada com um nome que atende aos dois sexos. Para a mãe, ela sempre foi “uma criatura estranha e selvagem” com uma carreira que não era edificante para uma mulher. Aos doze anos Camille já trabalhava a argila, e aos quinze já havia esculpido David e Goliath e Napoleão. Seu primeiro mestre Alfred Boucher, a apresenta a Paul Dubois, diretor da escola Nacional de Belas Artes, que reconhece seu talento.

Camille através da arte de fazer surgir seres novos, cujos traços são marcados para sempre, fixados, congelados na frieza da pedra denuncia sua posição fantasmática diante do Outro.

Em 1881, com dezessete anos convence o pai a estabelecer a família em Paris para que ela e os irmãos pudessem aperfeiçoar seus estudos. No entanto Louis Prosper é obrigado a trabalhar em outra cidade, e só ia para casa aos domingos. A família nunca perdoou mais este “egoísmo” de Camille. O afastamento do pai é descrito por seu irmão, o escritor Paul Claudel como um cataclisma.

Em Paris no ateliê de Rodin, Camille logo se sobressai, tornando-se sua aluna, modelo predileta e amante. O mestre a mantém à parte, ele a privilegia. Ela trabalha de forma incansável, dedica-se às suas orientações e lhe serve sendo responsável pelos pés e mãos das suas obras e nessa época os dois produzem “a porta do inferno”. Até 1888 continua morando com os pais que ignoravam esta relação. Anos depois, sua mãe, escreverá que não quer mais vê-la, “pois ela tem todos os vícios”, e a acusa de tê-la exposto levando Rodin e a mulher, para jantar em sua casa, quando na verdade já viviam como amantes. Sua filha era uma prostituta que fazia o pai sofrer. Paul que tomou conhecimento do romance com Rodin antes da família, sente-se traído, reprova a irmã. As referências de Paul à sua irmã possuem um tom enciumado e de exaltação à sua beleza e genialidade.

Em 1888 Camille e Rodin passam a viver publicamente como amantes em uma velha mansão que se torna seu novo atelier. A família indignada recusa o contato público com ela. No entanto Rodin jamais abandona Rose Beuret.

A crítica a reconhece como uma artista de estilo próprio e genial, a sociedade, porém a condenava, e isso impedia que ela concorresse aos concursos para obras públicas. Camille engravida e Rodin a envia de férias para o interior, aos cuidados das chamadas fazedoras de anjo. Cria aí uma obra belíssima a pequena castelã, rosto de uma menina dirigindo para cima um olhar morto. Este aborto a “torna impura e suja” no dizer de Paul.

Por volta de 1893 Camille escreve a Rodin: “eu estava ausente quando o senhor veio, pois meu pai chegou ontem e fui jantar e dormir em casa(....) A senhorita Vaissiers me contou toda sorte de fábulas forjadas sobre mim em Islette. Parece que saio à noite pela janela de minha torre , suspensa numa sombrinha vermelha com a qual ponho fogo na floresta!!!”

Em 1892, rompe pela primeira vez o romance com Rodin e monta seu próprio ateliê na ilha de Saint Louis. Durante os sete anos que se seguem desafia o mestre, negando sua ajuda e desesperadamente tenta conseguir encomendas. Torna-se alcoólatra e é protagonista de vários escândalos. Expõe ainda duas vezes, mas não comparece em público, alegando que está feia e acabada para se expor. Em uma das cartas justifica a recusa em participar do Salão de Outono, por não poder apresentar-se em público com as roupas que tem no momento: “sou como pele de asno ou Cinderela, condenada a cuidar da lareira sem esperança de ver chegar a fada ou o Príncipe encantado que deve mudar minha roupa de pele ou cinzas em vestidos cor do tempo”. Pele de asno é outra forma metafórica de referir-se a posição feminina, a da mulher que espera o príncipe guardando sob as vestes as insígnias paternas.

Trancada em seu atelier, repete incessantemente “o canalha do Rodin” frase que é escutada pelos vizinhos. O meio artístico antes tido como ideal, passa a pertencer ao bando de Rodin que a todos seduz e convence contra ela. Suas idéias e seus desenhos serão roubados, executados, terão sucesso e seu nome será excluído. “Eu serei perseguida por toda minha vida pela vingança deste monstro, o perseguidor Auguste Rodin”. Até a morte, Camille mantém inalterada a certeza delirante de que Rodin a persegue. Em uma manhã só abre a porta para Henri Asselin que viria posar, após longa conversa. Ela estava desfeita, tremendo de medo, armada de vassoura em riste e lhe diz: “esta noite dois indivíduos tentaram forçar a minha janela. Eu os reconheci, são dois modelos italianos de Rodin. Ele lhes ordenou que me matassem. Eu o incomodo. Ele quer me fazer desaparecer.” A partir daí Camille todos os anos, no mês de julho, destrói a marteladas suas esculturas e depois some por algum tempo.

O pai que continua até o fim da vida mantendo-a financeiramente, insiste com Paul para que interceda junto à mãe a fim de que esta consinta em se aproximar de Camille “talvez esta louca varrida melhore”. Mas Louise é irredutível e assim se manterá até a morte. Em março de 1913, Louis Claudel morre aos 87 anos. Informada por carta pelo primo Charles Thierry ela responde “O pobre papai nunca me viu como eu sou; sempre lhe fizeram crer que eu era uma criatura odiosa, ingrata e má. Era necessário para que o outro pudesse tudo usurpar” e afirma que a família vai logo interná-la em uma casa de loucos, por acreditarem que ela é nociva ao sobrinho quando reclama seus bens “por mais que eu me encolha em meu pequeno canto, ainda sou demais”.

A internação de Camille em Paris ocorreu uma semana após a morte do pai. Louise estava livre e conseguiu um atestado com médico amigo da família e vizinho de Camille .O laudo de internação certifica que a senhorita Camille Claudel sofre de perturbações intelectuais muito sérias; tem hábitos miseráveis, é absolutamente suja, nunca se lava, vendeu todos os seus móveis, passa sua vida completamente fechada, só sai à noite, e tem sempre o terror do bando de Rodin, e que seria necessário sua internação em uma Casa de Saúde.

Camille vive a desordem absoluta, procura deseperadamente o reconhecimento. Preterida pela mãe e pelo amante, ela não tem lugar no desejo do Outro. Camille trai o pai na medida em que se apaixona por Rodin em detrimento de sua própria obra. Ela fracassa em superar o mestre e sustentar o nome do pai – sustentar o nome Claudel para o pai. Assim já não pode pertencer ao clã Claudel. Em uma de suas cartas escreve “teria feito melhor comprando belos vestidos e belos chapéus que realçassem minhas qualidades naturais do que me entregar à minha paixão pelas construções duvidosas e os grupos mais ou menos ásperos”, ou ainda “esta arte está mais de acordo com as grandes barbas e caras feias do que com uma mulher relativamente bem dotada pela natureza”.

Camille Claudel nos trinta anos em que passa prisioneira em um asilo escreve constantemente à mãe. Suas cartas eram repetidos apelos desesperados para que esta a tirasse do asilo, mas a resposta era implacável. As cartas da mãe de Camille para o diretor do asilo, proíbem que ela se corresponda com quem quer que seja, “pois suas cartas poderiam servir àqueles que faziam campanha contra a família Claudel devido a permanência da escultora no asilo. Segundo sua mãe Camille tem idéias as mais extravagantes, suas intenções são sob o ponto de vista das família sempre muito más, ela nos detesta, e está sempre pronta a nos fazer todo mal que puder” Aos pedidos endereçados à família , tanto por Camille quanto pelo diretor do asilo , sua mãe oferece uma soma maior em dinheiro para que ela permaneça internada. Sua mãe tinha horror de qualquer aproximação com esta filha que só trazia a vergonha e desonra.

Em 1930 uma última carta, esta dirigida a Paul “ hoje 3 de março é o aniversário de minha internação! Faz 17 anos que Rodin e os marchand de objetos de arte me enviaram para fazer penitência nos asilos. Eles é que mereciam estar nesta prisão, pois eles apoderaram-se da obra de toda minha vida através de B. que conta com sua credulidade e a de mamãe e de Louise. Eles diziam: nós nos servimos de uma alucinada para encontrar nossos temas! É a exploração da mulher o esmagamento da artista de quem se quer expremer sangue! Tudo isto no fundo sai da cabeça diabólica de Rodin. ...

Em outra reclama da comida e solicita que a mãe lhe envie os seus pedidos e que não gaste dinheiro pagando pelo que ela não consome no asilo. “Tem novidades de Paul? De que lado ele está agora? Ainda tem a intenção de me deixar morrer em um asilo de alienados? É bem cruel para mim. Isto não é lugar para mim”.

Camille Claudel morreu em 19 de outubro de 1943, após trinta anos de internação, aos 79 anos incompletos.

sábado, 18 de setembro de 2010

Baudelaire – A OPÇÃO PELO MAL: poesia e modernidade


* Este texto é um plágio, uma costura, um copyleft... (Um resumo quem sabe, só para amenizar. O objetivo e conhecer, falar e fazer a conversa).

A Modernidade, em termos teóricos, significa ruptura, negatividade, crítica. Por outro lado, é sinônimo de progresso tecnológico, fixação da ética do consumo, do ideal de conforto.

Uma significativa vertente da poesia moderna é aquela que faz a sua opção deliberada pelo mal. Pensar sobre o significado desta escolha e de sua estetização implica percorrer os caminhos teóricos da modernidade e do mal; implica também, principalmente, penetrar na "maldade" dos poemas.

A poesia constitui uma forma de resistência em relação à desumanizadora proposta de vida do sistema capitalista e o faz de diversas maneiras, tanto voltando-se para a infância ou para o inconsciente, como dirigindo-se especificamente para o social. A poesia como resistência não consegue integrar-se aos discursos correntes da sociedade. Sua maneira de ser a caracteriza como tal: símbolo fechado, hermetismo, autodesarticulação, silêncio.

Um motivo sempre presente na literatura da modernidade é o das multidões, descritas, geralmente, como empecilho, no meio de quem é necessário abrir caminho para poder passar. Há os encontrões, a irritação, os movimentos desordenados e os gestos de quem está só, exatamente porque há muitas pessoas ao seu redor.

Enfim, o desacerto do homem num meio urbano superpopuloso, conturbado, poluído, a perda da identidade na multidão, o labirinto, a pressa, o flâneur constituem assuntos fundamentais para a estética moderna.

O pensamento benjaminiano sobre modernidade demonstra que ela se vincula a uma série de fatos, acontecimentos e realizações materiais que modificam substancialmente o modo de ser do homem e do meio, bem como as relações entre os homens. A Literatura e a Arte, ao mesmo tempo em que captam essa nova realidade e a expressam, também são influenciadas por ela.

O moderno não é a tradição, mas outra tradição; a modernidade nunca é ela mesma, é sempre outra e não é caracterizada unicamente pela novidade, mas pela heterogeneidade, pluralidade, estranheza radical; o moderno nega o passado, é uma paixão crítica que culmina com a negação de si mesma.

Em Baudelaire, o mais ilustre representante da arte pela arte, vida e obra testemunham profunda abjeção em relação ao mundo em que vivia. É certo, todavia, que ele era um homem urbano, sua sensibilidade se alimentava daquele turbilhão e era dali que sua inspiração brotava. Embora abominasse a ética burguesa, foi o apogeu das conquistas dessa classe que forneceu o material básico para sua obra.

Baudelaire execrava o progresso, o trabalho, a democracia burguesa, o comércio, os jornais... Desses chega a dizer:

"Os jornais, sem exceção, da primeira à última linha, não passam dum tecido de horrores. Guerras, crimes, roubos, impudícias, torturas, crimes... uma embriaguês de atrocidade universal. (...) Não compreendo que uma mão pura possa tocar num jornal sem uma convulsão de repugnância" (1981, p. 133).

A modernidade conheceu os poetas Baudelaire, Lautréamont, Verlaine, Rimbaud, Poe, alguns dos mais dignos estetas do mal.

Que razões os impeliram a buscar no mal a fonte, por excelência, da inspiração poética?

O que é o mal?

"Por mim afirmo: a volúpia única e suprema do amor consiste na certeza de fazer o mal. E o homem e a mulher sabem, de nascença, que no mal se encontra toda a volúpia "(BAUDELAIRE, 1981, p. 17).

O mal, de um ponto de vista filosófico e teológico, apresenta certa dificuldade de explicitação devido à impossibilidade de, num sistema, existir a contradição. Se Deus é onipotente e é bom e o mal existe, não há como solucionar tal problema.

Os fatos e fenômenos catalogados como mal são: pecado, sofrimento, morte, adversidades naturais, doenças... Ricoeur adverte que não se pode catalogar fenômenos tão díspares numa mesma denominação e distingue o mal cometido do mal moral ou físico, sofrido, reconhecendo, no entanto, que as fronteiras entre ambos não são absolutamente divisáveis; o pecado entra na linha do mal cometido, mas acaba penetrando na outra, a do mal sofrido, na medida em que o pecador se torna vítima, a partir da punição.

A questão fundamental é: de onde vem o mal? O mito já a enuncia através da presença da lamentação: até quando? por quê? A bíblia atribui o mal a uma culpa originária: o pecado original. Nos grandes sistemas filosóficos do ocidente o mal constitui um desafio e uma impossibilidade de solução.

A literatura, apesar de não sanar, de não evitar o mal, com ele se relaciona mais livremente, pois o princípio de ambigüidade que a rege às vezes demonstra que o mal não é mal; além disso, no plano estético, a existência e combinação de bem e mal concorrem para a harmonia de conjunto.

A despeito de não poder banir o mal nem o seu conseqüente grito de lamentação, a literatura admite-o no seu seio, na natureza humana, como prova, talvez, da ilusão que é o sonho humano de ser feliz. A literatura explica e abarca a existência do mal como o contraponto do bem, algo dado, presente na natureza.

Poe escreveu vários textos em que trata da existência do mal e está convencido de que os impulsos do mal são os "prima mobilia" da alma humana. É uma propensão primitiva irredutível, um sentimento radical que é negligenciado pela pura arrogância da razão. Segundo Poe, o homem lógico ou intelectual, em vez do homem inteligente ou observador, se pôs a imaginar desígnios, a ditar propósitos a Deus. Dessa forma, tendo sido criado antes, o homem se conscientiza dos aspectos que são aquilo que a divindade pretendia que fosse, mas não é. Seria muito mais sábio classificar e ver aquilo que o homem efetivamente é.

Para Poe, assim como para Dostoiewski, existe no ser humano um princípio de perversidade que é parte dele, ou, de outra forma, como explicar, por exemplo, a irreversível atração do abismo?

A teologia da Cruz coincide, em última análise, com o budismo: amar a Deus por nada, a suprema purificação.

Em literatura, a modernidade forneceu as condições históricas para que o homem tomasse consciência do mal, penetrasse nos seus abismos. Em autores como Poe, Tolstói e Dostoiewski, existe a expiação do mal.

BAUDELAIRE E AUGUSTO DOS ANJOS: POETAS DO MAL

No plano da teologia cristã, as idéias de bem e de mal estão personificadas em Deus e Diabo. Deus é bem e Diabo é mal, porque é revolta, desobediência, múltiplas possibilidades de inversão da ordem, caminho de liberdade.

No poema "As Litanias de Satã", Baudelaire inverte o quadro cristão referente à veneração. As litanias são a forma erudita das ladainhas: preces, orações dirigidas aos santos e à Virgem. A repetição, em coro, tem por fim solicitar a piedade e a intervenção dos santos e da Virgem, junto ao Deus supremo, tendo em vista o estado de pecado e desolação da condição humana. As litanias são uma espécie de louvor e reconhecimento do poder desses entes sobrenaturais que privam com a divindade.

Ora, Baudelaire, em vez de dirigir suas litanias aos entes que estão do lado do bem, dirige-se a Satã, a encarnação do mal. Revertendo o quadro da teologia cristã, o poeta mostra que o mal não está onde está, embora, continue existindo. O poema se apresenta como litania tradicional, inclusive com a forma fixa da repetição – tem piedade – "o Satan, prends pitié de ma longue misère!" É a enunciação elogiosa de Satã que está no lugar de Deus, é Deus aquele que tem o poder de socorrer os humanos na sua longa miséria. Já, de início, é descrito como o mais belo e sábio dos anjos, um deus traído e privado dos altares, dos louvores. Poderosa força habita Satã, ressurgindo sempre apesar da força contrária; conhece o interior do ser humano, suas angústias e a elas dá alento como curandeiro (guérisseur); não faz distinções sociais; o leproso e o pária são coisas de Satã; esperança, morte, loucura, desvario também o são. O proscrito, o desterrado, o inventor, o enforcado, o bêbado (a quem protege) pertencem, igualmente, ao reino de Satã. Além de tudo, é seu olhar que "desvela os fundos arsenais onde sepulto dorme o povo dos metais". Na oração final, a enunciação de Satã se completa: é aquele que pode proporcionar um outro conhecimento, um outro saber sobre o mundo e o ser, é a árvore da ciência que o poeta deseja alcançar.

O poema situa Satã onde ele realmente existe: no próprio homem. A opção de Baudelaire é pelo lado satânico do ser: esse lado seria o mal.

Impossível deixar de relacionar a opção de Baudelaire pelo mal e o impulso fáustico, no sentido da tradição mais significativa do mito de Fausto. O poeta opta pelo mal num legítimo impulso fáustico e ali reconhece a possibilidade do conhecimento abissal e de realização do desejo titânico de superação dos próprios limites. Baudelaire, o arquétipo do poeta, como é tido pela tradição cultural, é um fáustico e sua obra testemunha essa escolha.

O poeta brasileiro Augusto dos Anjos é um poeta-filosófico do mal; seus versos estão permeados de túmulos, vermes, podridão, doença, morte; toda a sua obra poética é uma reiterada tentativa de explicação do mal, de exacerbação da condição perecível de tudo o que é vivo; o mal, aqui, relaciona-se ao que é inerente à matéria, à força que a induz a transformar-se, decompor-se, deixar de ser uma forma para ser outra inferior. É o mal sofrido da visão de Ricoeur, própria da dor, das perdas irreparáveis, da condição mortal do ser, do homem como vítima de uma poderosa força destruidora.

O mistério da morte lenta e incondicional constitui o motivo poético tornado obsessão, tormento da consciência que o percebe, mas nada pode fazer contra seu frenético domínio. Em geral não há alívio na poesia de Augusto dos Anjos para essa dor implacável. Ela se expressa pelo sentimento de revolta, de melancolia, de pessimismo desolador:

"Eu luto contra a universal grandesa

Na mais terrível desesperação

é a lucta, é o prelio enorme, é a rebelião

Da creatura contra a Natureza!" (REIS, 1977, p. 140)


"Melancholia! Estende-me a tu'aza!

És a árvore em que devo reclinar-me..." (p. 142)


Octávio Paz refere-se, na obra Os filhos do barro, ao fato de os poetas, em geral, serem religiosos, mas cada qual inventa, de certa forma, sua religião, suas crenças, seus mitos, principalmente depois da morte de Deus. Porém, no centro dessa diversidade de sistemas poéticos é visível uma crença comum, verdadeira religião da poesia moderna, do Romantismo ao Surrealismo: a crença na correspondência entre todos os seres e os mundos. Tal fato é anterior ao Cristianismo, chega ao século XIX e sobreviverá, inclusive, ao cientificismo: é a analogia, ponto de união da poesia de todos os tempos.

Se há uma "moral" em relação à abordagem do mal na literatura da modernidade, considerando a obra de Baudelaire ou mesmo a de outros poetas, ela consiste no esforço deliberado e absoluto de conhecer o mal, penetrar nos seus meandros e tomar consciência de que existe. O poeta realiza o pacto com o mal para conhecê-lo profundamente, em última instância, para superá-lo.

Do mal também jorra uma fonte de prazer e os poetas que nela imergiram, certamente não ficaram imunes ao seu fascínio.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAUDELAIRE, Charles. Meu coração desnudado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
______. As flores do mal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989.
BOSI, Alfredo. Poesia resistência. In: -. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix. 1990. p. 139-92.
HEGEL. Estética: o belo artístico ou o ideal. Lisboa: Guimaraens Editores, 1983.
LAUTRÉAMONT. Cantos de Maldoror. Lisboa: Fenda Edições, 1988.
PAZ, Octávio. Os filhos do barro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
REIS, Zenir Campos. Augusto dos Anjos: poesia e prosa. São Paulo: Atica, 1977.
RICOEUR, Paul. O mal: um desafio à filosofia e à teologia. Campinas: Papiros, 1988.

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Abaixa:

Charles Baudelaire - As Flores do Mal:
http://www.4shared.com/file/6074930/51862916/Charles_Baudelaire_-_As_Flores_do_Mal.html?s=1

*Texto na Integra:
http://w3.ufsm.br/revistaletras/artigos_r1/revista1_2.pdf

Digerindo uns Livrinhos de Psicanálise:



Livros Psicanálise:

Calligaris – A SeducaoTotalitaria
http://www.4shared.com/account/document/aKIeIoIJ/19133244-Calligaris-A-Seducao-.html

Gilles Deleuze - Cinco Proposições Sobre a Psicanálise
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Joel Birman - Estilo e Modernidade em Psicanálise
http://www.4shared.com/account/document/RcaKg489/Psicologia_Joel_Birman_-_Estil.html

A Corrosão do Caráter - Richard Sennett
http://www.4shared.com/account/document/YILZr5Dp/A_Corroso_do_Carter_-_Richard_.html

A Cultura do Novo Capitalismo - Richard Sennett
http://www.4shared.com/account/document/9JltNY1K/A_Cultura_do_Novo_Capitalismo_.html

A Lei do Desejo - Deleuze e Lacan
http://www.4shared.com/account/document/psVtu7fW/A_Lei_do_Desejo_-_Deleuze_e_La.html

Carne e Pedra - Richard Sennett
http://www.4shared.com/account/document/baqOBi7b/Carne_e_Pedra_-_Richard_Sennet.html

Da Horda ao Estado Eugène-Enriquez
http://www.4shared.com/account/document/RBkxNQjM/Da_Horda_ao_Estado_Eugne-Enriq.html

Eugène Enriquez - Psicanálise e ciências sociais
http://www.4shared.com/account/document/a7shQ5Iv/Eugne_Enriquez_-_Psicanlise_e_.html

Jacques Lacan - Diccionario de Topologia Lacaniana
http://www.4shared.com/account/document/7AL68QpQ/Jacques_Lacan_-_Diccionario_de.html

Jurandir Freire Costa - Transcendência e violência
http://www.4shared.com/account/document/5j3ZD-DI/Jurandir_Freire_Costa_-_Transc.html
 
 
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