Quadro "O Pesadelo" de Henry Fuseli (1741-1825)

* A Peste Onírica é um delírio subversivo. Postamos aqui nossas réles "produçõezinhas"; nossos momentâneos surtos de divagações em nome do Real do Simbólico e do Imaginário. Estão aqui nossos ensaios para que possamos alçar outros vôos num futuro próximo. Aproveitem os links, os materiais, as imagens, as viagens. Sorvam nossas angústias, nossas dores e masquem nossa pulsão como se fosse um chiclete borrachento com sabor de nada. Pirateiem, copiem, contribuam e comentem para que possamos alimentar nosso narcisismo projetivo. E sorvam de nossa libido, se assim desejarem.


domingo, 24 de janeiro de 2010

“De te fabula”


“De te fabula”: A história, qualquer que seja, é sempre sobre você (ditado latino);



Sebastian


Sebastian Díaz Esquivel nascera numa chuvosa tarde de março na cidade de Valência, Espanha. Inicialmente relutou em pertencer ao mundo, como se soubesse desde então das adversidades as quais estaria sujeita sua existência. Parecia morto até a intervenção de uma branca palma estalar em suas nádegas, pressagiando o pranto por vir, despertando-o para a vida. Arrebatado nos braços da enfermeira, manifestava uma posição a qual não se livraria tão cedo. Na sala de parto pode-se ouvir o suspiro da mãe satisfeita ao perceber que a agitação vinha de um menino. “Sempre esperei sua chegada, pequeno rei dos meus sonhos...” e extasiada em seus pensamentos, Soledad admirava o recém chegado como uma obra-prima, envaidecida pela própria autoria. Mal podia esperar para vesti-lo com os pequenos conjuntos azuis que escolhera meticulosamente. Já havia preparado toda a trajetória do menino, do jardim à universidade. Seria um médico, como fora seu avô, de mesmo nome. Ao menos era isso que ela sonhava para ele.

Para acompanhar o crescimento do garoto, Soledad plantou um olmo (árvore da qual Arthur e seus cavaleiros extraíam a madeira para suas lanças, segundo as lendas). Esperaria ela ver emergir em seu filho um altivo cavaleiro? Quais os limites para a delirante fantasia de uma mãe desesperada? Sabe-se que nunca perdoou Esteban por tê-la deixado. Ele morreu, é verdade, mas não tinha esse direito!


Na escola Sebastian chamava pouca atenção. Passava introspectivamente observando as brincadeiras de seus colegas, esperando o sinal para voltar ao aconchego de seu lar, a seus brinquedos, aos braços de sua mãe. Com o passar dos anos se interessava mais e mais pelos livros. Preferia não pensar muito em como teria sido crescer com um pai ao lado. Para ele, as histórias proporcionavam um lugar seguro, um refúgio, onde a “loucura do mundo” – como escrevera em suas redações aos 16 anos –não destruiria seus sonhos, sua paz.


Iniciou, compelido por sua mãe, os estudos de medicina na Universidade local. Sabia que não era o que queria vendo-se perdido entre estudos de anatomia e fisiologia. Passou a dedicar seu tempo em aula escrevendo. Em suas histórias e poesias se reconhecia o talento de um escritor imaginativo e perceptivo. Considera que sua vida transcorreu tranquilamente esses anos todos, numa normalidade quase letárgica, mas isso não se estenderia por muito tempo...


Numa noite fria, enquanto saía carregado de livros embaixo do braço, caminhando apressadamente até sua casa, algo se moveu nas sombras. Estava escuro na calçada em que passava, e não pode ver o que estava sobre o muro e agora pulava em seu rosto. Deixou cair seu material, debateu-se por alguns instantes para retirar aquilo que agora percebia ser um gato preto pendurado em sua camisa. Tivera já a sensação de ser observado enquanto transitava por essas ruas, quando ficava a sós em seu quarto, sentado à escrivaninha com a janela aberta. E isso serviu para deixá-lo mais paranóico. Espantado o animal, tratou de recolher os papéis espalhados. Ainda ouviu um ruído vindo dos arbustos próximos, mas não ousou verificar de que se tratava. Seguiu seu trajeto para casa, tomou uma ducha demorada e foi deitar-se.


Pelo menos quatro noites se passaram até que sentado na biblioteca universitária, consultando obras de Balzac na estante, notou não estar só. Por entre os livros pode ver passar a figura esguia de cabelos negros e traços finos. Ela lhe fitou rapidamente, como se para certificar-se de que era observada. Seu pálido semblante revelou um leve sorriso de satisfação ao constatar que sim, ele a vira. “Que linda! Como pode haver criatura tão perfeita!” pensou, ao menos crê ele ter somente pensado. Recolheu alguns livros e retornou a seu lugar, próximo de onde ela se sentara. Ensaiou inúmeras formas de iniciar uma conversa, porém, sem êxito. Ela praticamente o ignorava, compenetrada em sua leitura. Passaram-se trinta minutos até que ela se levantou e saiu. Sebastian discretamente se pôs a segui-la. “O que estou fazendo? Como posso sair atrás dela assim? Mas eu preciso conhecer ela” Sebastian sente-se invadir a noite a dentro! “Sim! E por que não? Sim sou um Amante como aqueles que Balzac fala! Isso é mais emocionante que ficar ao lado daqueles mortos e estudos de medicina”. Mas para a sua decepção alguns quarteirões depois simplesmente a perdeu de vista, assim que dobrou a esquina. Haviam poucas casas naquela quadra, um prédio velho, lojas e uma casa grande e sombria, com altas grades cercando-a. Ela não moraria num lugar daqueles, isso era certo.


Chegara a semana de avaliações, e Sebastian tentava se concentrar em seus estudos. Mas a imagem daquela moça persistia em sua mente apesar dos esforços que fazia para afastá-la. O relógio digital sobre o criado-mudo marcava 02h45min quando uma voz feminina sussurrou docemente em sua cabeça: “Meu poeta querido... escreva para mim... escreva Sebastian, deixe transbordar pelas linhas o fogo que seu coração não pode dar conta...” E ele escreveu. Dominado por uma compulsão sobrenatural, escreveu durante toda a noite, parando só pela manhã, quando sua mãe levantou e pegou-o acordado ainda, o que ela não admitia. Já tinha 23 anos, mas não era saudável ficar tanto tempo acordado!


Soledad não entende o que está se passando com seu filho. Andando distraído pela casa, às vezes o surpreende admirando o jardim pela janela enquanto pronuncia baixinho palavras ininteligíveis. Sentado na varanda seu olhar se perde fitando o infinito... “isso não é bom!” pensa consigo. Já tivera conhecimento acerca dos poucos namoricos em que ele se envolvera anteriormente. Mas dessa vez tinha algo mais. Será que seu amado garoto estaria... apaixonado? Fica a se interrogar incredulamente quem ousaria roubar-lhe o bem mais precioso que dispunha. Caberia a ela a tarefa de protegê-lo, como sempre fizera nesses anos.


Vagando à noite pelas ruas em que seguiu aquela mulher, após fazer o caminho algumas vezes, decide por fim ir embora. Ao chegar a sua casa se depara com seu quarto bagunçado. Gavetas abertas, papéis espalhados, e nota a ausência de suas poesias. Sai pela casa aos gritos e pela primeira vez expressa furiosamente sua revolta para com sua mãe:
- Soledad! O que fez de meus papéis? Acaso está louca mulher?

De seu cômodo ela responde:

- Como ousa falar assim comigo? Tu és quem deve estar enlouquecendo!Não vê que só quero teu bem? Estou te protegendo e um dia irá me agradecer!
- Não sabe o que diz, onde colocou meus poemas?
- Queimei aquilo tudo!
- O que fizeste foi destruir o laço que me unia a ti, a quem não considero mais como mãe!

E ignorando as súplicas de Soledad, Sebastian arrumou suas coisas numa mochila e partiu. A madrugada chegara e o único lugar em que poderia descansar seria a estação do metrô para onde se dirige. Ele observa a sua sombra, uma após a outra ao passar pelos postes de luz, sente-se confuso não sabe o que fazer. “E agora qual será o meu próximo passo?” Mas Sebastian só escuta seus passos enquanto caminha até o metrô. “Tenho toda a minha vida pela frente” Dizia ele a si mesmo.


Encolhido em um banco duro, com um cão velho ao lado ele dorme. Acorda pela manhã ao som do trem que agora vomita pessoas de todos os tipos. Sobre seu corpo, um bilhete à mão com as palavras:


“E pensar que esteve perto tantas vezes meu poeta. Venha me ver onde as flores lamentam, o aguardo impacientemente.”


Leu a mensagem incrédulo, tentando entender como ela havia chegado ali. Seria daquela bela mulher?Como poderia?E onde seria o lugar onde as “flores lamentam”? Guardou o papel no bolso do casaco e partiu à procura de um hotel para ficar.


Ao cair da noite fria, saindo de um bar onde havia aquecido a garganta com umas doses de whisky, tenta decifrar o enigma. Segue impulsivamente o mesmo caminho de antes, quadras e quadras a pé, até parar diante a grande mansão. Esta ficava numa esquina, que para sua surpresa era o cruzamento da Avenida Flores com a Rua dos lamentos (local onde foram massacrados militantes contrários ao ditador Franco nos anos 30). Só podia ser ali, o portão principal estava semi-aberto e Sebastian sentiu seu coração acelerar a cada passo dado em direção à porta. Não podia ver o chão claramente devido a precária iluminação, que se limitava a uma fraca lâmpada na varanda. Ao fazer menção de bater, a porta se abriu lentamente revelando uma decoração suntuosa entre a penumbra. Sentiu-se entrando numa próspera mansão do século XVIII. Mas quem abrira a porta?


- Entre Sebastian, não tenha medo.


Hesitou por um instante e finalmente arriscou dar um passo para dentro da casa. Ouviu a porta se fechando à suas costas, deixando-o nervoso. Ainda assim, com toda insegurança típica de sua personalidade, via-se incapaz de recusar as gentis colocações da dama. Agora podia vê-la levantar de uma grande poltrona e caminhar lentamente até ele. Rosto altivo, lábios bem vermelhos, cabelos pretos. Usava com distinta elegância um vestido vinho e preto que remetia à era Vitoriana. Parecia deslizar pelo carpete avermelhado, num andar sutil e nobre que o hipnotizara. Tanto é que em momento algum suspeitou da casa, do figurino da anfitriã, da rubra coloração que os olhos verdes dela estavam tomando.


Ela parou diante de Sebastian estendendo a mão, a qual ele prontamente se inclinou para beijar.


- Permita que me apresente nobre poeta, me chamo Carenza.


Sorriu e indicou um lugar próximo ao crepitar da lareira para o convidado. Ele deu uma volta em torno dela, como se quisesse confirmar a veracidade da visão diante seus olhos.


- Por favor, sente-se ali, suponho que não irá recusar uma taça de vinho.
- Bem... eu... é... claro! Aceito sim. Obrigado. Mas conte-me senhorita... Carenza, como sabe meu nome, e que escrevo poemas?
- Encontrei umas folhas perdidas voando pela calçada por onde passava, e me chamaram atenção. Então pude perceber que se tratava de poesia, e AMO poesia.
- Verdade, penso ter perdido alguns papéis outra noite dessas, mas como soube que eram meus?
- Para ser sincera, pude ver de longe que era você, só não pude alcançá-lo para devolver-lhes. Sua assinatura estava numa das páginas, daí fiz a ligação.


Satisfeito com a resposta, Sebastian perdeu a noção do quanto havia bebido, mas sentia o doce do vinho em sua boca e que do tempo transcorrido desde a sua chegada seguiu empolgadamente conversando sobre arte, música e literatura. “Que sorte achar uma mulher bela e culta como esta!” Em algum momento acabou comentando sobre o problema com sua mãe. Contou o quanto estava chateado com tudo isso, mas que queria mesmo ser livre e viver sua própria vida.


- Acredito que minha mãe só me deixará em paz quando morrer. Aposto que irá por toda a polícia atrás de mim, e não sossegará até que eu volte para casa.


Tendo ouvido isso, os olhos da mulher se apertaram ligeiramente.
- Esta tudo bem agora, fique aqui esta noite querido. Cuidarei de você.


Carenza levantou-se, tirou a taça da mão de Sebastian e beijou-o demoradamente.


Abriu os olhos, estava um pouco tonto ainda e a sua frente estava uma senhora com uma bandeja nas mãos. Parecia ter cerca de 50 anos, mas movia-se agilmente;


- Senhor, fui ordenada a trazer-lhe esta refeição.
Colocou a bandeja sobre ele, arrumando seu travesseiro.
- E a senhorita Carenza?
- Ah, a senhorita teve que sair para resolver uns assuntos pela cidade.


Eram 2 da tarde quando saiu da mansão, ainda zonzo pela bebida, - se é que bebera tanto assim. Voltou ao seu hotel e descansou um pouco mais. Fumando e pensando nela. Então pensou em dar uma passada em casa e ver como estava sua mãe. “Talvez tenha sido muito rude com ela”. Surpreendeu-se ao ver a frente da casa tomada por policiais. Correu para dentro da casa, rompendo o isolamento.


- Saiam da frente, eu moro aqui droga!


Subiu correndo as escadas e chegando ao quarto de Soledad ficou chocado. Sua querida mãe jazia sentada em sua cadeira de balanço. Os braços pendiam para os lados, a cabeça inclinada e seu rosto denotava uma expressão de terror incontido. Ainda assim a presença dela parecia demandar-lhe obediência. Caiu de joelhos aos pés dela e inevitavelmente desabou em pranto. Passados alguns minutos, levantou-se lentamente para fitá-la mais uma vez. Inclinou-se sobre ela encarando a profundidade daqueles mortos olhos negros, como os dele. Com uma das mãos acariciou aquela face marcada pela passagem de 54 primaveras e algo muito doloroso.


Nos dias que se seguiram não quis ver ninguém. Sozinho em seu quarto, Sebastian pode sentir intimamente a miséria de seu desamparo. Garrafas vazias e papéis espalhados emolduravam um corpo passivamente entregue. Indiferente ao passar das horas. Tentando dormir a maior parte do tempo e negligenciando os cuidados com seu corpo alimentava-se pobremente. Boa parte do seu mundo se fora com a morte de Soledad. Era nisso que pensava quando seus pensamentos foram subitamente tomados pela lembrança de Carenza.


Já se passara mais de uma semana e agora sentia falta da jovem mais do que nunca. Sentado ao chão, com a cabeça apoiada contra a parede, refletia quanto ao rumo que sua vida tomaria. Resolvera definitivamente abandonar o curso de medicina. Não precisaria mais tentar enquadrar-se na vontade de sua mãe. Poderia em fim realizar aquele desejo incontrolável que assaltara sua mente nos últimos tempos. Estudar literatura, escrever e tornar-se um escritor reconhecido. E um novo ânimo voltou a habitar aquilo que era praticamente um cadáver ambulante.


Nessa mesma noite teve a idéia de visitar sua amante misteriosa.


- Entre... Bem vindo a minha casa; Entre livremente e de boa vontade; Vá em segurança e deixe algo da felicidade que trás! – Exclamou ironicamente Carenza, parafraseando Drácula, de Bram Stoker.


- Vejo que estava à espera de alguém já?!
- Sim, ele acabou de chegar.


Sebastian forçara um sorriso, e na conversa que se seguiu falou muito a respeito da triste perda sofrida. Ela representava certo interesse, mostrando-se afetada e pesarosa com a notícia. Após ouvi-lo por um bom tempo, sua atenção desviou-se do relato para fixar-se no leve pulsar da artéria carótida no pescoço do rapaz. Decidiu intervir:


- Sei como se sente Sebastian, e lamento profundamente o ocorrido. Mas o que acha de conhecer o ateliê onde rabisco uns traços? Por favor, siga-me por aqui.


Conduziu-o através de um longo corredor precariamente iluminado. Chegando por fim numa ampla peça ricamente decorada com estátuas em jade, granito e ainda alguns quadros. Dos objetos estendiam-se largas sombras tremeluzentes como a chama das velas que ali queimavam. Prontamente reconheceu uma das obras expostas:


- “Caim matou Abel” – Sussurrou Sebastian fascinado;
- Ah, você viu, também adoro esse quadro. Tenho-o a um tempo considerável, e confesso ter sido muito inspirador para mim. Mas o motivo de tê-lo chamado aqui é outro... – Disse ela, acolhendo em seus braços um gato negro como a noite.


Sebastian ficou um pouco nervoso e desconfiado, aguardando impaciente que ela terminasse sua colocação.


- Gostaria de retribuir os poemas a mim endereçados, e confesso que eles seduziram os meus pensamentos, e que agora eles repousam sobre você! E não posso negar o que sinto ao ver as letras que você lança como flechas sobre o papel nu. Para tanto, permita-me tentar retratá-lo aqui e agora. Aceite como um modesto agradecimento esta minha obsessão por dar permanência ao que julgo belo.


- Assim você me deixa constrangido sabia?


Carenza ignorou o comentário e se pôs a pintar, selecionando cuidadosamente as cores que iria utilizar. Havia uma janela logo atrás dela, através da qual ele pôde ver o contorno escuro de uma grande árvore que contrastava com o brilho da lua. Imaginou se tratar do jardim da propriedade.


- Sabe... Fico um pouco sem jeito com essa situação, estar posando para você. – Desabafou ele ansiosamente. E apesar do que sua boca falava seus olhos a beijavam em silencio e em segredo “O que será que ela quer de mim? Será que ela me ama?” E em silêncio Sebastian estava a admirar aquela quem o admirava também. Ele observa como ela manuseava o pincel do qual dele ela extrai o belo, como ela mesmo afirmava “ao que julgo belo” – Estes outros quadros foram pintados por você? Que diferentes, muito originais mesmo.


Referia-se a algumas telas onde figuravam cenas perturbadoras e confusas, nas quais predominava a cor preta e o vermelho.


- Nada é assim tão novo querido, tenho visto sempre as mesmas coisas, apenas apresentadas numa ordem diferente. – A frase parece ter tido para ele um toque da anti-sabedoria surrealista. Ela acrescenta:


- Como disse Walter Pater, é a combinação de estranheza e beleza que constitui a atração romântica da arte.


Calou-se e permaneceu pensativo. Sua admiração por Carenza era tamanha que quase esquecera de seu luto. Quisera ter o talento da jovem para poder pintá-la também.


A sombra da arvore, atrás de Carenza, uma imensidão negra que parecia atravessar a janela e invadir a sala e abraçar a dama, e ela com a sua pele essa que ficava ainda mais branca a luz da lua, tudo isso era uma experiência que o jovem poeta até então só tinha vislumbrado em algum dos seus sonhos. “Ela parece estar entre a escuridão, que momento, que sensação, observar ela, mas talvez seja ela quem mais me observa” Sebastian mais uma vez olha para a escuridão que a arvore produz, “talvez seja eu o herói poético que a salvarei dessa sombra...”. E assim ele a contemplou e assim ele sonhou, “basta um beijo e eu serei feliz”.


-Pronto, vejamos o que vai achar... - Sinalizou ela para que se aproximasse.


A tela reproduzia ambos dentro deste mesmo aposento. Nela Sebastian observa através da janela a árvore do lado de fora, enquanto a jovem aparece abraçando-lhe pelas costas. De olhos fechados, boca levemente aberta e o nariz apontado para o pescoço dele, como se estivesse desfrutando de um doce perfume.


- Gostei! Ficou ótimo Carenza, você é capaz de captar a beleza escondida no mais trivial.
- Gostou mesmo é? - Indagou ela soltando uma breve gargalhada. – Às vezes penso que o belo é simplesmente o que nos dá prazer, supre nossa necessidade. Essa é apenas uma forma de mantê-lo junto a mim por mais tempo.


Se não se importa, vou trazer-lhe algo para beber.


Nesse momento o jovem poeta olha mais uma vez o quadro que Carenza pintou, a luz da lua ilumina a superfície, a tinta brilha úmida, suas mãos querem tocar a pintura ainda molhada como se estivessem a tocar o próprio corpo dela. Logo seu desejo é dissipado pelo silêncio ao qual estava envolto. “Preciso descobrir mais sobre ela, preciso entender o que ela quer de mim...”.


Sebastian aproveitou o momento a sós para analisar mais atentamente às obras. Não pode ignorar os ruídos vindos do quarto ao lado, aproximando-se deste para verificar. Entrou numa pequena peça empoeirada, onde constatou que a causa do barulho fora novamente o gato, que passara correndo por ele agora. Curioso diante das telas cobertas por lençóis brancos que ali estavam, adiantou-se para dar uma olhada no que ocultavam. Descobrindo uma a uma, interessou-se pela coincidência que manifestavam. Todas retratavam homens, aparentemente de diferentes épocas, devido a variedade dos trajes. O último deles, num uniforme militar parecia-lhe familiar, mas ao se aproximar uma voz interrompeu sua observação.


-Vejo que está Curioso sobre em mim. Ela ri, e quando Sebastian vira-se lá esta ela á sorrir graciosamente.


Mas logo sua expressão modifica-se, seu olhar constrange Sebastian. Ela aproxima-se dele – Cuidado Sebastian, cuidado com a curiosidade, ela pode levar você a descobrir segredos que retirariam esse brilho de vida dos seus olhos, olhos esses que desejo só para mim. Para sempre, e sei que os verei mesmo após a morte! Para sempre...


A casa


Construída por volta do século XVIII numa área residencial burguesa, a mansão se destacava das construções vizinhas. Desprovida do brilho de seu tempo, reconstruída inúmeras vezes. Era mais uma excentricidade arcaica no coração de Valência. Fundada para ser a residência da magistratura local, testemunhara boa parte da história recente da cidade. Da sacada no segundo andar podia-se ver a passagem do rio Túria poucos kilômetros a leste.


Seu primeiro morador, o juiz Júlio Márquez Mondragón, investira nela considerável soma de seus recursos. Recém chegado à cidade no ano de 1753, vindo de Madri, esperava pretensamente impressionar a todos. Tamanha ostentação custar-lhe-ia cara. No inverno seguinte fora fatalmente atingido num duelo de espadas. Não resistiu ao ferimento no peito, deixando uma esposa e dois filhos para trás.


Anos depois, após vingarem à morte do pai, Gabriel e Joaquín partem rumo a capital. A mãe falecera um ano antes, e estes concordaram em vender a propriedade. O comprador veio a ser um político de destaque, o qual passou a ser famoso pelas festas realizadas no local. A casa permanecera na família Vallejo desde então.


Em 1975, após enfrentar uma crise nos negócios de importação de grãos, o empresário Carlos Vallejo vai à falência. Os credores dividiram o patrimônio entre si, incluindo a propriedade. Esta ficaria desabitada até 1999, quando uma senhorita mostrara interesse em sua aquisição. Seu nome original, seu passado e a fonte de sua riqueza eram desconhecidos, embora se mostrasse socialmente ativa e com as contas em dia. Acrescentara ornamentos góticos em ferro, harmonizando com as gárgulas já existentes. Promoveu grandes reformas sem alterar, no entanto, o aspecto decadente do exterior.


Nos dez anos em que esteve sob os cuidados de sua nova dona, poucas pessoas viram seu interior. Durante o dia pode-se ver apenas uma senhora que sai cedo para fazer compras, e um jardineiro que encara com desconfiança os transeuntes. Circundada por altos muros, possui um pesado portão principal, único ponto de onde se pode ver o jardim da entrada. Uma calçada em mármore contornada pela vivacidade rubra das roseiras conduz até a porta da casa. Parece haver um jardim maior nos fundos, mas pode ser pura especulação. Empregados anteriores atestaram a presença de um pequeno cemitério também. Mas a imaginação popular não tem limites, e o que esperar quando as testemunhas estão internadas num hospital psiquiátrico?!



A árvore



Perdida em meio a um enredado de folhas e galhos, no que teria sido a muito um vasto jardim, uma árvore solitária. Era um antigo carvalho, talvez até centenário. Fora preciso o apoio de algumas vigas de madeira para sustentar o peso dos anos e mantê-lo em pé.


Ainda guarda a marca de pregos velhos pelos galhos inferiores. Servira de brinquedo a pelo menos três gerações dos Vallejo. As iniciais talhadas em seu tronco são quase imperceptíveis agora, a menos que se passe a mão cuidadosamente. São as iniciais de Martín Vallejo e Estela Escobar, pais de Carlos.


Conheceram-se no período entre - guerra, cada qual pertencente a famílias politicamente antagônicas. Martín, contrariando seu pai, foge com Estela para a França, onde se casam. Logo nasce Carlos, e com o fim da guerra civil retornam à Valência. O velho Alfonso, avô de Carlos, os acolhe surpreendentemente bem. Talvez por sentir seu fim próximo e esperar a continuidade do nome da família, dos negócios.


Não se pode dizer mais que é só uma velha árvore. Sobretudo pelos penduricalhos em seus ramos. Delicadamente amarrados por uma figura silenciosa, quase monástica debaixo de seu vermelho manto aveludado. Uma jovem que quando abatida pela solidão recorre ao carvalho, contando-lhe seus segredos, confidenciando seus desejos. De certo modo ela se identifica com ele. Sabe como é permanecer presa a uma existência que se nutre do calor, não da terra... mas dos demais. E ver a vida que se esvai a sua volta, a transitoriedade das coisas todas. É por isso que ela tem devotado tanto cuidado e atenção a essa árvore.


Carenza


Nascida em 1740 entre a nobreza Veneziana, Francesca Abruzzi Andolini era uma típica jovem de família rica destinada a uma vida reservada e um casamento arranjado. Gostava de desenhar escondida e contemplar as obras dos museus de arte. Tendo sua mão prometida a um abastado comerciante Genovês de 60 anos, opôs-se a vontade de sua família. Anunciou que preferia tirar a própria vida a casar-se com tal sujeito.


Foi nesse intento que aos 19 anos se lançara por um dos canais que serpenteavam a cidade. O sol já havia se posto, o que dificultou que fosse socorrida. Removida da água por um cavalheiro desconhecido, acreditava estar morta, exceto pelo distante som vindo da voz deste. Ordenava-lhe que bebesse e tudo ficaria bem. Confusa e delirando, sentira algo escorrer por sua garganta. Sentiu sua cabeça girar, sugando vorazmente o que após abrir os olhos, identificou como sendo o pulso do homem.


Como Francesca viria a descobrir mais tarde, estava morta. O cavalheiro explicou-lhe a nova condição a qual estaria sujeita. Alimentando-se de sangue, evitando o menor raio de sol, tomando a noite como guardiã. Esta seria sua “vida” desde então. Agora era uma vampira, e o estado das coisas mostrara-se irreversível.


Desmaiada com a novidade, ele a levou até sua propriedade, uma fortificação fora da cidade. Apresentou-se como Alejandro Cortez, Conde de Córdova. Assustada com a estranheza da situação, assim que despertou tentou fugir. Atravessou a janela do quarto onde repousava, no terceiro piso, arrebentando-se no chão. Ele ensinou-a como se curar rapidamente, acalmou-a com suas palavras gentis as quais se via incapaz de desconsiderar.


Ensinou-lhe muitas coisas, quase tudo o que sabia. Enamoraram-se profundamente, sem terem idéia dos perigos que os rondavam. Alejandro, certo dia surpreendera dois homens espionando seus aposentos do lado de fora. Inquisição, eles o acharam, pareciam farejar os do seu tipo. Seus guardas não estavam à vista, então decidiu agir. Quando despertou e desceu as escadas, Francesca o viu limpando o sangue da roupa diante de um espelho na sala. Os espiões estavam mortos.


Nenhuma palavra fora dita a respeito, mas ele esperava a compreensão por parte dela. E ela o entendia, estava disposta a segui-lo no que fosse necessário, sempre.


Na noite seguinte, ao despertar, deparou-se com um bilhete com a letra dele:

“Infelizmente precisamos nos separar minha amada. Temo por vossa segurança mais que tudo. Nunca me perdoaria caso algum mal se abatesse sobre vós por minha causa. Espero que entenda, não a estou abandonando. Deixei uma quantia considerável no baú, para prover vosso sustento. Não esqueça de manter sempre o máximo sigilo quanto a sua condição. Muitos são os que nos caçam. Mantém alertas aqueles que vos servem, nunca se alimente deles. Nunca deixe a fúria e a fome dominarem-na, é o caminho da destruição. Não seria seguro revelar-lhe para onde irei, poderia ser o fim de nós dois. Então peço que confie em Roberto, ele me foi fiel por muitos anos. O encarreguei de protegê-la e levá-la a um lugar seguro. Por fim, fica meu desejo de que nossos caminhos venham a se cruzar o mais breve possível. Lembre-se que a amo mais do que tudo... Seu na era por vir, Alejandro Cortez.”


Lágrimas de sangue escorreram de seu pálido semblante. Levou tempo, mas acabou aceitando sua situação de desamparo. Desde então Francesca passou a viajar pelo mundo, trocando de nome constantemente. Representava impecavelmente os mais variados papéis nas cidades em que passava. Desenvolvera suas habilidades de manipulação mental ao extremo. Podia seduzir praticamente qualquer um com um simples olhar. Concentrando-se um pouco, tornara-se capaz até de saber o conteúdo dos pensamentos alheios. Não fora difícil para ela acumular uma pequena fortuna em pouco tempo.


Mas dinheiro nunca fora problema. Buscava em suas viagens conhecer mais sobre a arte e o amor. Passados 45 anos desde a partida de Alejandro, decidira parar de procurá-lo. Não estava disposta a esperá-lo mais. Percorrera toda a Europa atrás de seu amado em vão. Aproveitando a onde renascentista, aperfeiçoou seu talento como pintora e escultora. Agora a mulher começava a ter seu lugar reconhecido diante a sociedade. Aproveitou a admissão de mulheres nas Universidades para aperfeiçoar seus conhecimentos. Em alguns anos tornara-se uma erudita.
Ao longo dos anos conhecera muitos homens, sem dúvida. Encontros vazios, fugazes que tinham por objetivo somente tentar saciar uma estranha fome. Ela não costumava matá-los, apenas tomava o necessário e então os deixava num sonolento torpor. Era tempo suficiente para que sumisse na neblina da noite. Era desse jeito que ele lhe ensinara.


Escolhera viver em Valência nos últimos anos, adotando o nome de Carenza de Rocio. Influente no meio artístico, organiza eventos periodicamente. Impressiona todos por sua apurada percepção e suas críticas sagazes. Tem o respeito e a admiração da elite intelectual da cidade. Aceita alguns convites para jantares reservados, mas recusa habilmente toda proposta de almoço. É uma pena que às vezes se sinta obrigada a ceifar vidas. Mas só o faz nas poucas ocasiões em que se apaixona realmente. Então pinta um retrato da vítima, para que fique algo bom desse amor... já que Alejandro nada deixara. Não suportaria ser abandonada novamente, então essa é uma solução que encontrara para se defender. Outra excentricidade sua é coletar algum objeto pessoal de suas vítimas e pendurá-los numa árvore em seu jardim.


E Sebastian? Bem, quem sabe ela sinta ter reencontrado algo perdido nesse rapaz. Pode ser a forma como escreve, a habilidade com as palavras que a faz recordar tanto Alejandro. E quem sabe ele sobreviva, se não for estúpido o bastante para tentar fugir. Diante a fragilidade de seu amante, olhando para ele, ocorre-lhe o pensamento de que às vezes aqueles que nos amam causam-nos males maiores do que os que nos odeiam.


Por: Gonzalo Penalvo Rohleder

Participação de: Ricardo Fitz

sábado, 23 de janeiro de 2010

O Ranho da Subjetividade


“O próprio escrever perdeu a doçura para mim. Banalizou-se tanto, não só o acto de dar expressão a emoções como o de requintar frases, que escrevo como quem come ou bebe, com mais ou menos atenção, mas meio alheado e desinteressado, meio atento, e sem entusiasmo nem fulgor”.

(Fernando Pessoa – Livro do Desassossego)


Poderia fingir sono e sonho e, então, viver na fantasia do eterno dormir. Poderia se não fosse à insônia e os monstros do dia a me perseguir. De lá para cá não sei mais ao certo quem sou. E onde é este lá e este cá? É dentro de mim. Vivo, faz quase um ano, uma espécie de in solidum. Toda minha alma está tomada pelo mal. Por conta disso dei, ultimamente, de ler o mal do século. Ler Rimbaud com dezoito anos é uma coisa e ler Rimbaud aos trinta e poucos é bem outra. O mesmo vale para Baudelaire, meu grande mestre, meu Satã da literatura.

Tenho pronunciado a célebre estrofe das litanias: “Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria”. Quando estou andando solitária, na rua povoada de civilização, me ouço em ladainha pedindo misericórdia para Satã. Sinto-me louca, miserável e em decomposição com a vida, diria melhor, em descompasso com a vida. Desculpo-me por tudo e por todos os sofrimentos do mundo, como se eu fosse a única causa dos males que afligem os humanos. Nas noites silenciosas sento-me na varanda e fumo pensando que quero ser deus – um deus cruel que mata a todos e depois chora. Aliás, como tenho chorado... Será que lágrimas curam? Momentaneamente sim. O desejo maior é voltar ao calor uterino, pois vivo um espedaçamento narcísico, diria Freud – ferida que jamais cicatriza.

Minha melancolia é fruto... fruto. E basta dizer isso. Fruto de uma missa fúnebre. Como me apraz à alma escutar cantos fúnebres... Estou num contínuo e interminável ritual de morte. Onde o morto, quase em decomposição, anseia ser enterrado e ninguém lhe acode, pois todos permanecem fixos. Fumam, silenciam, bebem e se encaram vez que outra para ter a certeza de que permanecem todos na sala. Uns vigiam os outros e ninguém pode sair. Lá fora aves de asas oblongas circundam a casa, cães magricelas disputam o território. Pediriam um osso de braço do defunto? Dizem que cães não comem homens. Sinceramente, não sei. Só sei que homens são capazes de comer homens – a velha história da antropofagia.

Lamentemos, de mãos suadas e dadas, para eu-infeliz e para outros infelizes:
“Vita detestabilis, nunc obdurat, et tunc curat... sors immanis et inanis, rota tu volubilis, status malus, vana salus semper dissolubilis, obumbrata et velata michi quoque niteris; nunc per ludum dorsum nudum fero tui sceleris. Sors salutis et virtutis michi nunc contraria, est affectus et defectus semper in angaria”.

Incomoda-me toda esta inteligência do mundo sobre o mundo, querem curar a tudo e nos deixam mais loucos, mais sofridos. Quanto mais curam, mais doenças causam. Não quero fazer parte do mundo, quero estar alheia, se coragem não me faltasse – pois bem, eis uma fraqueza que escondo – a covardia – faria como Rimbaud, escolheria uma terra vulcânica para me esconder e sofrer, suar e sufocar... Pobre Rimbaud morreu amputado e solitário. Que roda da fortuna reserva-me o ocasio? Qual o trem que hei de pegar para encontrar deus – “Deus est anima brutorum?”

Vou agora fingir que durmo para dissipar as luzes que me ofuscam, pois já é dia e os passarinhos cantam para minha angústia. Detestáveis eles cantam... Insipientes eles cantam... Por favor, digam-me, onde está o botão para desligar tudo isso?

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

A Música do Faminto


A música do faminto é escutar murmúrios que são seus -
Murmúrios de sua própria alma álacre.
É ouvir sussurros que não provocou;
Além dos gemidos perturbadores vindos de longe
A música do faminto é sentir um gozo que não é seu
Faz o outro gozar e passa fome
Satisfaz sua ânsia olhando a boca lambuzada do outro
A música do faminto é cantar canções de outros
A música do faminto são aspersões
Às vezes come ar,
Noutras, come e bebe nada,
Por isso é faminto.
O faminto despreza o que tem
E o que não tem, faz de música a imaginação à flor da pele.

Anatólia Akkale
18.01.2010 (que data horrenda)

domingo, 10 de janeiro de 2010

ASAS DO DESEJO À POESIA DE REINER MARIA RILKE


Os anjos catalisadores do filme “Asas do Desejo” de Wim Wenders renunciam à imortalidade para provar uma xícara de café e um cigarro. Os anjos ouvem os pensamentos dos humanos, perpassam pelo cotidiano catalisando as dores e emoções que eles não são capazes de sentir; vêem o mundo com seus olhares sem cores, sentem as coisas e os objetos sem sentir; são capazes de roubar uma materialidade para tentar provocar alguma sensação. A dimensão de dois mundos (mundo angelical espectro e mundo humano paixões-desejos) é confrontada com a realidade da dor – a dor do pós-guerra – 2º Guerra Mundial. A dimensão do real vem à tona com as imagens da Alemanha dividida pela guerra. O mundo espectral e onírico dos anjos é de um mundo sem angústias, embora lamentem a eternidade e invejem os humanos, mas sem angústias como dos humanos no sentido cotidiano e banal de suas pobres vidas mortais. Eles anseiam pelas paixões e banalidades, querem saborear dos sentidos e sorver as emoções, pois deus os privou deste emaranhado de coisas duras e saborosas, não há prazer maior para os anjos do que sair da moldura divina e encarnar a moldura humana, mesmo que seja uma moldura trincada.

Asas do Desejo nos oferece uma colagem de teorias filosóficas, uma espécie de síntese da humanidade – vai de Rilke (As Elegias de Duíno), Homero, Kierkegaard, Nietzsche, Sartre, Walter Benjamin... As pinturas de klimt ao roteirista do filme (Peter Handke) ...
Em Kierkegaar encontramos algo mais ou menos assim: “A angústia é a diferença que nos faz humanos. A angústia é humana! É isso que nos diferencia dos anjos e dos animais”.

Em Walter Benjamin: “O que é o anjo do futuro? Ele está com a cara voltada para o passado e não consegue prever o futuro – a memória já é fragmentada, a história é fragmentada”.

Asas do Desejo prevalece como uma grande obra prima do cinema; é sempre bom rever. É um filme carregado de poesia, encanto, dor e angústia. As musas de Homero são outras, a morte nos angustia, mas ainda assim podemos degustar um café e nos pulverizarmos interiormente com a fumaça de um cigarro que carrega nossas angústias em 5 minutos de fumaça. A angústia nos faz humanos – humanos que não conseguem vislumbrar um futuro, tudo é incerto, nossa memória se fragmentou, apesar da oralidade fluir; porém, só a partir de uma leitura singular... Só o sonho ainda pode nos transportar para a realização de nossos desejos – desejos de anjos, desejos de humanos, mas nunca esquecer que a angústia vem de nossos desejos mais profundos e desconhecidos.

O filme de Wim Wenders tem profunda reflexão sobre a subjetividade, sobre a humanidade, sobre a contemporaneidade, sobre o futuro e principalmente sobre as paixões humanas que, por último, constroem as primeiras. É muito para minha pobre associação livre do momento. Nada termina aqui. O filme ainda possui fantástica fotografia da dupla de velhinhos: Henri Aleka e Louis Cochet, além de uma gótica e ótima trilha sonora composta por Jürgen Knieper.

Um poema de Reiner Maria Rilke:


O Anjo


Com um mover da fronte ele descarta

tudo o que obriga, tudo o que corta,

pois em seu coração, quando ela o adentra,

a eterna Vinda os círculos concentra.
O céu com muitas formas Ihe aparece

e cada qual demanda: vem, conhece.

Não dês às suas mãos ligeiras nem

um só fardo; pois ele, à noite, vem
à tua casa conferir teu peso,

cheio de ira, e com a mão mais dura,

como se fosses sua criatura,

te arranca do teu molde com desprezo.

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