Quadro "O Pesadelo" de Henry Fuseli (1741-1825)

* A Peste Onírica é um delírio subversivo. Postamos aqui nossas réles "produçõezinhas"; nossos momentâneos surtos de divagações em nome do Real do Simbólico e do Imaginário. Estão aqui nossos ensaios para que possamos alçar outros vôos num futuro próximo. Aproveitem os links, os materiais, as imagens, as viagens. Sorvam nossas angústias, nossas dores e masquem nossa pulsão como se fosse um chiclete borrachento com sabor de nada. Pirateiem, copiem, contribuam e comentem para que possamos alimentar nosso narcisismo projetivo. E sorvam de nossa libido, se assim desejarem.


terça-feira, 30 de dezembro de 2008

AQUE TIPO DE CIÊNCIA É A PSICANÁLISE?

Alfredo Jerusalinsky
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A descoberta freudiana do inconsciente colocou em xeque a ilusão da modernidade de poder transformar todo saber em conhecimento. Embora nascida no berço da ciência, a psicanálise acabou demonstrando a impossibilidade de formular qualquer enunciado capaz de capturar um real sem que nada venha a sobrar fora dessa redoma da linguagem.
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Para tal demonstração a psicanálise não se apóia centralmente na evidência da vastidão inapreensível do real – o que a colocaria fora da ciência, exposta às especulações místicas – mas na condição mesma do sujeito que produz esse enunciado. Um sujeito tal que, na medida em que sua própria existência depende desse enunciado, é desse enunciado a matéria mesma que o constitui. De tal forma, o seu funcionamento não pode ser outra coisa que a lógica do discurso que, ao mesmo tempo, habita e do qual é, ele próprio, feito. Uma lógica, então, necessariamente paradoxal, já que é o sujeito mesmo quem produz a verdade que acredita descobrir.
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Tal descoberta, produzida pela psicanálise, teve duas grandes conseqüências no campo do saber. A primeira foi o reconhecimento de que o corpo real dos humanos é regido por uma ordem simbólica que desdobra sobre esse corpo efeitos imaginários; uma ordem que prevalece sobre os automatismos neurovegetativos. Na medida em que se verifica que a condição humana desse corpo depende de que os enunciados que o simbolizam mantenham sua eficácia, a anatomia e a fisiologia perdem sua exclusividade no reino do patológico. Isto muda a leitura dos sofrimentos e estabelece os princípios de uma nova clínica. A segunda, é que, embora não constitua uma nova epistemologia (faltaria para isso ter a fé que, no método, a ciência contemporânea tem), certamente produz uma nova episteme, ou seja, um novo ponto de partida para a abertura de caminhos do saber.
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Mais de cem anos de prática psicanalítica vieram produzir não somente o desdobramento dessas novas trilhas – nos campos da antropologia, das artes, da lingüística, da historiografia, da filosofia, das ciências jurídicas, da medicina, da psicologia, da literatura, entre outros – mas também um certo saldo de conhecimentos, emergidos de sua prática de leitura dos enunciados desde o vértice da enunciação. Dito de outro modo, leitura do saber não-sabido próprio do inconsciente.
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Porém, tal perspectiva exigiu do operador – o psicanalista, no caso – situar e definir o referente que permitisse o deciframento, a decriptação, a interpretação, em suma, desse saber entredito numa linguagem cuja lógica não se equivale com a da consciência. Isto introduziu uma condição incontornável: era imperioso tomar uma decisão, fazer uma escolha que, embora seja um momento comum a todas as ciências, não tem – na psicanálise – a contrapartida que tem em todas elas da configuração imaginária dos enunciados como universais.
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O ordenamento acadêmico, precisamente, se rege por esses universais, que permitem supor os enunciados que se transmitem como certezas. Do mesmo modo que a regulamentação de profissões se apóia na idéia de uma garantia de saber, como se tal coisa pudesse se constituir simplesmente por obra de uma letra jurídica. As dificuldades da conjugação da prática analítica com a prática universitária, tanto como sua resistência a ser arregimentada por qualquer aparelho estatal, residem em tal contraposição de princípios e postulados.
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Mas sua vocação pelas “rebarbas” dos enunciados – não podia ser de outra maneira – teve e tem conseqüências também para formulação de sua própria teoria. De fato, a formação – sendo ela sempre a do inconsciente – conduz os analistas a tomar sempre o que excede o enunciado do outro, com o qual ele não faz mais do que cumprir com seu papel de analista. O que em qualquer outra prática teórica constituiria uma posição gratuitamente implicante, aproveitando uma série de banalidades para questionar o trabalho do colega, no caso da psicanálise constitui a trilha mais apropriada – a via régia – da elaboração teórica. A multiplicidade de enfoques então, em lugar de desmentir, contribui para confirmar o fundamento de sua prática.
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O risco do ecletismo se faz imediatamente presente diante de uma atividade científica assim delineada. Facilmente o conjunto das proposições derivadas de tal forma de trabalhar nas bordas do saber humano, pode tomar a aparência de uma torre de Babel. Eis ali que se faz necessário estabelecer a condição da prova que toda proposição deve passar. O rigor neste caso consiste em exigir a prova da interpretação. Isso quer dizer que qualquer formulação neste âmbito corre o risco (ou talvez devamos dizer a sorte) de, ela mesma, ser interpretada. Tal exigência, por sinal, não coloca as coisas no caminho de uma coexistência pacífica das diferentes versões. Mas, na medida em que a psicanálise pretenda se manter dentro do terreno da ciência, pela condição imposta pela sua própria descoberta, terá que sacrificar a paz para se aproximar à verdade. De outro modo, a psicanálise não seria outra coisa que a prática de uma opinião.
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Mal faria a psicanálise se, com o pretexto da exigência de um rigor, pretendesse universalizar suas próprias proposições. Acabaria apagando com o cotovelo o que tanto a mão resistiu de – finalmente – escrever.
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domingo, 28 de dezembro de 2008

Alguns Livros de André Green

* Revelações do Inacabado: Sobre o Cartão de Londres de Leonardo Da Vinci.

* Um Psicanalista Engajado: Conversas com Manuel Macias.

* O Desligamento: Psicanálise, Antropologia e Literatura.

* Narcisismo de Vida: Narcisismo de Morte.

* Orientações para uma Psicanálise Contemporânea.

* André Green e a Fundação Squiggle.

* De Locuras Privadas.

Entrevista com André Green

- Desde o final da década de 50, a metapsicologia freudiana foi severamente criticada, no início pelos filósofos do positivismo lógico e mais tarde por importantes psicanalistas, como M. Gill e G. Klein. Em sua opinião, que lugar ocupa a metapsicologia freudiana atualmente?
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- As críticas de Wittgenstein, que eu saiba, não eram dirigidas à metapsicologia. Não creio que ele atentasse muito a ela. Penso que suas críticas eram principalmente dirigidas ao método de interpretação de Freud. As interpretações freudianas eram, aos seus olhos, demasiadamente convincentes. Mas quando disse isso, naturalmente tinha em mente que elas não eram convincentes, porque acreditava que a maneira de pensar de Freud, tão diferente daquela dos filósofos, não possuía procedimentos de testagem e de verificação, como ele mesmo tinha com sua análise da linguagem. Penso, portanto, que no que concerne ao positivismo lógico a verdadeira questão repousa em uma análise da concepção da linguagem na psicanálise e em sua filosofia de positivismo lógico, ou seja, até que ponto podemos pretender que a lógica seja uma maneira de entender o pensamento humano. Essa tradição origina-se da filosofia e, acredito, até onde alcança minha compreensão, até meu ponto de competência nessa matéria, surgiu após uma importante divisão ocorrida depois da filosofia de Husserl. Depois dele, por um lado tivemos Heiddeger, com a queda de Hésserl e, por outro, o positivismo lógico com Wittgenstein. É interessante notarmos que, ao final, o esforço para vermos o que as palavras significam realmente, o que queremos realmente dizer quando as usamos, conduz à conclusão, juntamente com os lingüistas, que a linguagem em si mesma não possui critérios da verdade. A linguagem é uma organização do homem que, para começar, deve produzir sentido e a idéia é que essa produção seja ampliada a partir da pessoa com quem se fala; outras propostas de significados serão assim refletidas. Existem movimentos, como por exemplo no campo da linguagem, o pragmatismo, com John Servant, que em alguma extensão aproxima-se mais de Wittgenstein que da psicanálise. Mas, com certeza, essas pessoas recusam destronar o poder da linguagem e dizer o quanto ela é influenciada por aquilo que pensamos que seja importante, ou seja, o inconsciente, e ainda pelo que determina o inconsciente: as pulsões, segundo o pensamento de Freud. O que devemos questionar, portanto, é esta concepção que considera apenas o que é lógico no homem e que deixa ao largo todas as partes ilógicas e irracionais. O que fez Freud, e ele foi o único, foi tentar produzir uma teoria centrada na inter-relação do irracional com o racional. Não é apenas uma teoria do irracional; ela tenta correlacionar ambos. Agora vemos isso na atualidade, nas ciências cognitivas, ou mesmo nas concepções das neurociências. É exatamente a mesma coisa se usarmos o modelo do computador ou das ciências cognitivas, o começo é sempre baseado na teoria da informação, em um esforço por considerar apenas os aspectos lógicos. Quando alguns dos filósofos da ciência, que baseiam seus estudos nas neurociências, são perguntados: "Mas o que vocês fazem com as crenças e os desejos das pessoas?", eles ficam muito embaraçados e por isso concluem que essas coisas não existem. Isso é o que se chama "Eliminativismo". A verdadeira questão, portanto, é um problema de lógica. Como costumo dizer, em uma teoria da atividade psíquica e sua relação com a ciência existem duas partes; a teoria da ciência e a teoria do sujeito que produz ciência, o qual tem que responder pelo funcionamento científico e não científico que coexistem na mesma pessoa. Agora, se levarmos em conta a discussão entre Freud e Putnam, veremos que a questão levantada à a da representação. Para os teóricos das ciências cognitivas, representação é aquilo que uma máquina pode registrar. Hillasry Putnam diz que para ele, como teórico de lógica, a interpretação está incluída na representação e não se pode separar uma da outra. Em minha opinião, a verdadeira crítica da década de 60 à metapsicologia veio dos psicólogos, que eram completamente incapazes de aceitar a idéia de uma metapsicologia. Por quê? Porque eles sabem apenas psicologia! É impossível para eles aceitarem a idéia de que Freud descreve hipoteticamente algo que está além da observação, que não pode ser alcançado pela observação e que ele considera como mecanismo psíquico algo que não pode ser lidado pela psicologia. Os psicólogos usam, por exemplo, conceitos como motivação ou comportamento: há uma enorme diferença entre motivação e desejo, entre comportamento e função psíquica. Ainda que George Klein fosse um crítico de Hartmann, e acredito que está certo, porque o modelo de Hartmann é simplificador, ele mesmo não pode fornecer com clareza uma boa teoria inconsciente. Apenas Gill, que fez um enorme esforço para compreender a psicologia - a metapsicologia em primeiro lugar - veio a campo mais tarde e disse que ela deveria ser totalmente rejeitada. Porque o maior problema em psicanálise é determinar o que é relacionado ao significado e o que é relacionado aos determinantes corporais, que não podem ser considerados "significativos" da mesma maneira que quando falamos da significação. Do ponto de vista de um francês, as críticas de Gil e Klein, ainda que ensejem o debate, são piores que a metapsicologia, com todos os seus enigmas, mistérios e hipóteses sem comprovação. Isso significa que desistimos dos assim chamados enfoques realísticos. Os americanos são obcecados pela realidade, mas nunca encontramos uma alusão ao que seja o desejo. Se eles se inclinam à psicologia, é uma psicologia muito pragmática, há um ódio da especulação, uma desconfiança da especulação, uma aversão à especulação, uma intolerência às idéias que não sejam unívocas. Isso é um - assim chamado - espírito científico que não tem nada a ver com psicanálise e onde tentam escapar disso e fazer outra coisa, chegando apenas ao enfoque psicológico que nomeei anteriormente e que não tem utilidade. Mesmo indo além, existem alguns pensadores que tentaram promover outra maneira de pensar, como Roy Schafer, ele tem a idéia da ação da linguagem, que é um modelo baseado na ação. Então eles querem ação, eles não querem pulsões! Bem, para discutir isso seria necessária uma longa oportunidade e, com certeza, admitir que a ação possa ser considerada como o mais próximo modelo para a pulsão. Mas é exatamente o contrário! Uma pulsão é uma ação internalizada que impulsiona à ação. Parece que essa idéia não pode ser aceita pelos americanos. Mas é verdade que hoje em dia nossos congressos da API (Associação Psicanalítica Internacional) não nos dão qualquer oportunidade para debater o assunto em extensão. Porque as pessoas temem derramamento de sangue.
Mas, de qualquer forma, se dermos às pessoas tempo suficiente, elas poderão explicar isso teoricamente. O importante é entender que a hipótese biológica de Freud, que hoje é rejeitada por todos, não foi substituída por outra com a mesma capacidade de explicação. É preciso aceitar as contradições. Freud lançou uma série de hipóteses que pensou que fossem biológicas, mas nunca firmou o mais débil compromisso do ponto de vista biológico. Sempre disse que, para ele, nenhuma descrição era boa o suficiente para explicar o que ele descrevia. Mas manteve a hipótese biológica e não se perturbou por isso. Foi capaz de mantê-la em segundo plano e dizer: "Vamos ver o que irá acontecer!". Mas, na atualidade, bem, nós a descreveríamos como psíquica. O que sucede agora? Eles (os americanos) não aceitam a descrição de Freud e o que oferecem é uma espécie de psicologia sem vida, sem inconsciente ou com um inconsciente muito formal. Não sei como conseguem pensar em tal concepção porque, como disse antes, se vocês querem sua teoria com algumas consistância, liguem a TV e perguntem-se o que está acontecendo na tela e o que está acontecendo em sua teoria. Foi assim que Freud fez. O importante para Freud não foi o bebê. Foi a observação daquilo que os homens estavam fazendo, o que procuravam, atrás do quê estavam correndo. É claro que, então, voltou à base, ao campo clínico, e como poderia ver este, o campo clínico, como uma espécie de exemplo. Mas Freud nunca disse que todo o conhecimento da psicanálise deveria derivar-se da clínica.
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- Depois da morte de Freud a psicanálise desmembrou-se em diversas teorias, a partir do freudianismo original, que se desenvolveram em suas próprias bases até tornarem-se hoje escolas psicanalíticas (escola kleiniana, Psicologia do Ego, etc.). Em sua opinião, como se situa a psicanálise francesa em relação as assim chamadas "escolas psicanalíticas"? E a obra de Lacan?
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- A situação da psicanálise francesa na atualidade é bastante interessante. Se considerarmos o que aconteceu no passado com o povo da Europa Central ao tentar escapar dos nazistas, veremos que não se estabeleceram na França por duas razões. Uma delas é óbvia, devido à guerra e à invasão da França, de onde teriam que sair de novo, também porque as autoridades francesas não eram muito receptivas e não ofereciam facilidades. Houve alguns que tentaram, por exemplo os que fizeram a guerra sob o uniforme francês em 1940 ...
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- Que tentaram a França, antes de irem para os Estados Unidos?
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- Sim, e analisaram Rash, Legrand e alguns outros... A originalidade da psicanálise francesa deve-se a ela ter tido dois inícios. Teve um início no período de 1926 até a guerra, foi interrompida durante a guerra e reiniciou em 1949, enquanto que na Inglaterra e também na América a psicanálise prosseguiu. Sabemos que na América os psicanalistas trabalharam nas universidades, onde os caminhos estavam abertos e existiam contribuições, instituições e assim por diante. Tudo isso teve por resultado o fato de, por ocasião do novo começo, os franceses não terem ninguém para transmitir a experiência da Europa Central, da psicanálise que era feita na Áustria, na Alemanha e na Hungria. A única pessoa próxima a Freud era a princesa Marie Bonaparte. Isso criou uma surpreendente situação. Como na França não tínhamos nenhum dos discípulos de Freud para nos ensinar e treinar tivemos que construir um Freud inteiramente novo. Uma imagem de Freud que pudesse ser esboçada a partir do seu trabalho. Os franceses tinham um conhecimento de filosofia, que é incluída na escola secundária... sei que existem muitos outros países onde a filosofia é incluída na escola secundária...
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- Aqui ela foi removida durante o período militar.
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- Não é preciso dizer mais nada! Alguns dos franceses, então, seguiram o jeito americano, mas não tão intensamente. Lacan veio e trouxe um renascimento ao estudo de Freud, no que seria uma espécie de leitura como um filósofo. Não uma leitura rápida, não uma leitura superficial, mas atenta a cada detalhe. Os que estavam no primeiro grupo chamaram a isso de um retorno a Freud. Por fim Lacan desenvolveu sua própria visão e obviamente o que disse era muito diferente do que Freud havia dito. Isso tornou-se o que vocês conhecem por lacanismo. Em duas palavras, eu diria que Lacan teve uma importante influência, primeiro porque era uma pessoa muito difícil e, segundo, por haver decidido lutar em campo público e com isso filósofos, pensadores e escritores agruparam-se em torno dele. Sofreu influência deles e com certeza foi esperto o bastante para apresentar-lhes uma concepção do inconsciente que se adaptava exatamente ao intelectual. Se vocês disserem que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, com certeza todos os profissionais da linguagem irão pensar que podem lidar com o inconsciente porque a linguagem é sua ferramenta e seu trabalho. E era, decerto, uma teoria muito sedutora, por ser sofisticada, mas é claro que sabemos como Lacan regulamentou a psicanálise, e isto eu penso é o que ainda acontece. Acredito que, por isso, acontecerá ao final que a teoria de Lacan será feita em pedaços, assim como as demais teorias, se forem ameaçadas pelos mesmos fatos. Mas o que aconteceu, creio, é que temos o que chamo de uma teoria pós-lacaniana, visto que todas as pessoas na França que contribuíram significativamente para o avanço da teoria foram, em algum momento, lacanianos, mas liberaram-se de Lacan. Alguns ainda incluem certa quantidade de teoria lacaniana. Outros, diversamente, estão tentando integrar aspectos da teoria psicanalítica que aprenderam com Melanie Klein, Bion, Winnicott. Penso que se quiserem compreender o que é a psicanálise francesa devem levar em consideração que desde os velhos tempos existe uma forte resistência à psicanàlise americana, mesmo a essa psicologia, que tem sido considerada como uma interpretação do trabalho de Freud completamente esvaziada, sem interesse, sem vida e que foi construída sobre a psicologia, novamente a psicologia! E tudo sobre o que falaram as ciência modernas são variações desse mesmo tema. A maioria delas acredita que a psicanálise deve ser muito claramente distinguida da psicologia. Essa é uma característica. A segunda é que os franceses opunham-se a uma supersimplificação do trabalho de Freud. Estudaram Freud, não como filósofos, e pensam que o trabalho de Freud é que se chama une oeuvre de pensê, que significa um trabalho do pensamento, e que ainda que muitos dos postulados de Freud sejam questionados ou até eventualmente descartados ou desconsiderados, a maneira de funcionar da mente de Freud permanece para muitos de nós um modelo do pensar, mesmo que adotemos hoje em dia outras atitudes e cheguemos a diferentes conclusões. Por isso continuamos a estudar Freud e posso dar-lhes um exemplo muito simples: existem trabalhos que já li trinta vezes e ainda encontro neles alguma coisa. Nenhum outro autor resiste a tal tratamento, ao menos, é claro, que não se queira saber do que ele fala.
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- Quais artigos, por exemplo?
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- "Negation"1, por exemplo. Posso dizer-lhes, como exemplo, que antes de vir para a América Latina li o "Outline"2 provavelmente pela trigésima vez, e achei novos aspectos que me haviam escapado. Vou possivelmente usá-lo no seminário no Instituto de Psicanálise no ano que vem e tentarei ampliar as reflexões que fiz. Penso, na verdade, que o fundamental é a correlação entre o significado e algo que não pertence ao significado, como sabemos da linguagem ou da filosofia, mas que está embasado na maneira em que Freud pensou que nós devemos considerar a relação entre o corpo e mente. O que estou afirmando é que a atual geração digeriu os conflitos surgidos há 40 anos. As pessoas não estão muito interessadas em saber o que aconteceu, quem estava certo ou errado; elas já digeriram o trabalho de Lacan e conhecem seus seguidores. Existem diferentes interpretações, algumas mais exclusivamente freudianas, mas no mesmo espírito não ortodoxo. Ninguém está interessado em ser um ortodoxo fiel a Freud. Interessam-se, como disse, em manter a mente de acordo com o modelo freudiano, mas não necessariamente com os mesmos ingredientes. Esses podem mudar. Existem, porém, alguns temas básicos que parecem importantes e dos quais não devemos abrir mão. Alguns transitam entre Freud e Lacan, outros, como eu, tentam criar algo novo com Freud e os que vieram depois, Bion, Winnicott e Lacan. Isso não é um jeito eclético de ser; é um jeito de tentar pensar nos problemas como fiz nesta manhã. Alguns interessam-se mais por Melanie Klein e análise de crianças, ainda que M. Klein não seja muito influente na França. Há quem tenha usado suas idéias, mas não exclusivamente dela. Essas pessoas, por exemplo, consideram que Francis Tustin seja pelo menos tão importante quanto Melanie Klein. Temos, então, todos esses grandes tipos de tendências com as características que apresentei. Há a recusa à psicanálise americana e à maneira de pensar americana. O único autor americano que realmente faz sucesso na França é Harold Searles. Há também reservas quanto à Melanie Klein, um enorme interesse pelo trabalho de Winnicott e Bion, é claro, pelo que restou de Lacan. São essas as características da psicanálise francesa, como as percebo. Com certeza há sempre pessoas interessadas nas tendências recentes de psicanálise infantil, nas idéias de Daniel Stern. Isso tem seu papel no pensamento global, apesar de existirem enormes reservas porque isso é comportamento.
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- O trabalho de Piera Aulagnier despertou interesse no campo psicanalítico e no meio cultural em geral no Brasil. Como situar seu trabalho no contexto da psicanálise francesa? Que espécie de crítica pode ser feita?
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- Piera Aulagnier tem a qualidade de ser uma pensadora independente. Sua separação de Lacan foi realmente dolorosa e tomou-lhe tempo. Lacan a estimava mas, como sabem, ele era uma espécie de trator, o que significa que se as pessoas não fossem integralmente dedicadas ao seu trabalho, e seguissem então uma trilha independente, ele as esquecia. Piera Aulagnier não deixou a Sociedade Francesa no mesmo momento que os outros, como Lagache, por exemplo, porque pensava: "Não posso fazer isso a Lacan". Era uma afirmação repetida por muitos. Finalmente decidiu que não poderia mais ficar porque Lacan estava em um período onde havia uma semelhança entre o que ele achava que ela deveria ser e a Revolução Cultural de Mao Tse Tung. Não estou brincando! E, para concluir, o treinamento era tão destrutivo que ela decidiu partir. Tornou-se uma pensadora independente e construiu seu trabalho devido, principalmente , ao seu interesse nas psicoses. Nessa área havia muito a ser feito, um outro enfoque que proporcionaria uma idéia diferente da construção teórica moderna da psicanálise, e ela se deu conta que havia coisas para as quais a teoria do significante de Lacan não tinha explicação. Foi assim que criou o Pictograma e construiu suas teorias, passo a passo. Posso dizer que ela estava em comunicação constante com o meu próprio pensamento e mantínhamos intercâmbios. Posso diferir dela em certos pontos que escrevi e que dei a ela para revisar, artigos que eram solicitados por ela e sobre os quais n?o posso entrar em detalhes. Mas sua teoria até hoje é uma viva concepção. Seu livro "The Violence and Interpretation" é certamente importante por abrir novos caminhos e à reconhecido em todo mundo. Claro está que existem pontos em desacordo que nós debatemos, como a questão do que ela qualifica como o "originário". Tentei mostrar que tal coisa não existe, mas isso é uma eterna discussão entre nós. É impossível entrarmos em uma crítica detalhada desse trabalho; o que posso dizer-lhes é que ela merece realmente ser estudada, só então pode-se fazer alguma crítica. Surpreendeu-me sua resistência às idéias de Bion, mas na França muita gente é relutante em aceitar suas idéias, porque eles pensam que o trabalho de Bion não é embasado em nossas referências usuais. Refiro-me, por exemplo, a negligência da teoria de Bion quanto a apontar o que seja o prazer. Isso é o que objetamos na teoria kleiniana, que se preocupa com o temor ao aniquilamento, ao caos, à fragmentação, ao desastre. É realmente como se pensássemos que os bebês vivem no inferno! E quando se fala no bom objeto, ele parece ser um objeto idealizado, uma questão de ilusão e onipotência; pensamos que esta idéia está errada. Quando estava certa ocasião em Buenos Aires e cheguei às conclusões finais da minha palestra, disse: "Vocês não podem fazer análise a não ser que se tornem conscientes de suas opções fundamentais. Do que pensam que seja o Homem, o que existe nele, seus valores, as coisas que esclarecem a maneira como vivem as pessoas. Há uma opção, que é dizer que as pessoas procuram segurança, procuram evitar ansiedade, tentam criar condições nas quais se sintam seguras e possam manejar as diversas possibilidades de perturbação e descompensação. Há outra opção, que é dizer que na verdade as pessoas estão gastando todo seu tempo em reparar um objeto interno destruído, e portanto a única solução é o eterno luto!. E há ainda outra opção que é a opção francesa de Freud, em que pensamos que o desejo do prazer é realmente o que mobiliza as pessoas na busca de algo perdido, o que implica naturalmente em diferentes tipos de perda". Isso é derivado de Lacan, a idéia de juissance, para a qual não há tradução em inglês, visto que enjoyment3 não é tão bom, ou talvez seja fun4. Vocês devem se perguntar: o que faz as pessoas correrem atrás de alguma coisa? E também os psicanalistas? Quais são as diferenças? O que nos move? O que queremos? É óbvio que a única possível resposta está relacionada ? idéia de prazer, a menos que vocês se tornem puritanos e digam: "Não, eu não procuro isso! Queremos ser boas pessoas!" É isto que vocês vêem na TV? Boas pessoas? Não! Agora vou permitir-me uma pequena brincadeira. Vocês conhecem a principal diferença entre o psicanalista inglês e o francês? A principal diferença é que na Inglaterra os sacerdotes casam-se, podem ter filhos e muitos destes se tornam psicanalistas. Quando os padres católicos têm filhos, eles são ilegítimos. Não estou brincando, há sinais desse puritanismo centrado nos bebês, em como tornar o bebê bom, em como criar as crianças e torná-los pessoas responsáveis e assim por diante. Mas atualmente a Inglaterra está mudando bastante e não estou certo se esses valores sobreviverão por muito tempo. Em todo o mundo sentimos que o apetite por sensualidade atualmente é ilimitado! Tenho observado recentemente uma grande mudança na mente das pessoas. Elas estão tendo consciência de que é o Princípio do Prazer que faz o mundo girar, não o Princípio da Realidade. Isso trará uma grande e imprevisível mudança, porque quando estiverem convencidas, não haverá limite para a violência que experimentamos agora e que está destinada a piorar com o tempo, para sempre. Não posso afirmar essas coisas, mas penso que são pensamentos aos quais vocês deveriam devotar algum tempo.
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- Vemos, na atualidade, teorias excepcionais sobre o "ser humano". Subitamente, entretanto, elas perderam espaço e importância no meio cultural. São exemplos o marxismo e o culturalismo. Qual será, em sua opinião, o futuro da psicanálise?
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- Preocupa-me o futuro da psicanálise pelo perigo que seja invadida pelas assim chamadas "teorias da relação", nas quais a especificidade do diálogo psicanalítico e da interpretação é empobrecida pela assim chamada "técnica do aqui-e-agora". Não me importo com essa técnica, apesar de discordar inteiramente dela. Enfim, por que não? Mas o que se observa é que ao adotar esse ponto de vista chega-se a uma supersimplificação do que acontece entre o paciente e o analista. Uma verdadeira teoria do aqui-e-agora, do aspecto intersubjetivo, significa que na intersubjetividade cada um tem que pensar o que ocorre na mente das duas pessoas que estão unidas na relação. É terrivelmente empobrecedor, porque há uma completa redução do que vai na mente de cada um dos dois sujeitos. Se vocês desejarem uma teoria da relação, então a sua interpretação da relação é preciso incluir o que ocorre na mente do paciente e também qual é a idéia, na mente do paciente, do que se passa na mente do analista. Essa seria uma teoria complexa, mas que faria justiça é complexidade da análise. Ao invés disso, temos interpretações arbitrárias, com freqüência sem profundidade, porque o paciente é sempre mais esperto que o analista. Bion diz que um paciente que não faz seu analista de bobo deve estar muito doente. Ele está certo. O paciente sabe muito bem como tornar o diálogo psicanalítico em uma espécie de rifa, em um impasse ou em uma situação na qual o poder do analista se transforma em um retorno é sugestão. Supomos ter feito progresso na contratransferência. Infelizmente, não vejo assim. O que vejo é que em nossa civilização ocidental a sexualidade foi ignorada por 25 séculos. Freud surgiu, esclareceu-nos sobre a sexualidade e agora voltamos ao período anterior a ele. Ninguém deseja ouvir sobre sexualidade, sobre a maneira pela qual somos marcados por ela desde pequenos; ninguém quer admitir que como adultos continuamos sob sua influência, mesmo curados. É aceitável apenas o tipo de relação que resulta em "Ama-me!" Para mim, isso é no máximo meia vertente da verdade. Então o que temos é um período em que a psicanálise estava preocupada única e exclusivamente com a destruição, agora está preocupada apenas com o amor sem sexualidade e por fim vamos nos tornar os chefes de um serviço religioso na forma deitada. Não penso que isso seja uma mudança real, uma consciência real do que somos, de quem somos! Precisamos do conforto de uma imagem de nós mesmos que não nos magoe demais. Muito obrigado.
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Tradução de Antônio Carlos Marques da Rosa
Transcrição: Margareth Dallagnol
Revisão Técnica: Paulo Oscar Teitelbaum

Revista de Psicanálise - SPPA.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Eu Sou Uma Sensação Minha

Ele disse que não tinha certeza de nada. Que poderia ser mesmo uma alucinação, um pesadelo, uma projeção subconsciente ou qualquer outra coisa assim...
A verdade? É uma coisa exterior?
A única realidade dele eram as sensações que “eles” proporcionavam... das sensações que vinham de dentro dele... Nem da própria existência estava certo.
Estava preocupado... isso era certo. Enquanto falava gesticulava nervoso, enumerando suposições para o fato. Dizia também, que preferia não contar tudo porque, de alguma forma, “eles” poderiam falar por ele e as coisas seriam mal compreendidas. Temia ficar agressivo e, ainda, poderia por fim, negar tudo o que pudesse vir a dizer.
Acrescentou sem encarar meus olhos que, talvez, nada tivesse a ver com a vida dele. Sabia ele que sempre foi um obcecado, mas o que estava acontecendo já era demais. Ele próprio estava horrorizado. E falou ainda, em voz baixa, que parecia um abismo cheio de música, objetos antigos e outros nunca vistos. E, quando estava caindo, se deixava levar... calmo e doce. É um veludo vermelho – macio. Confessou gostar, amar profundamente, desesperadamente. Na verdade, repetia, “eles” são o mistério que não significa coisa alguma ou são a verdade que significa qualquer coisa?! É claro que era uma idéia ou sensação dele. Mas sabia, tinha certeza, que “eles” existiam. E até se prestava a ter ridículas crises de ciúmes quando alguém ousava tocá-los sem o seu consentimento. Sabia que o mundo todo poderia tê-los, mas ele irritava-se profundamente com as pessoas que não lhes davam o devido valor.
Ele falou mais uma vez que os amava, porém, estavam deixando-o maluco; mesmo assim, não saberia viver sem “eles”...
Ele falava muitas coisas. Eu tentava acalmá-lo. Ele dizia que todos “eles” estavam dentro dele. Então, apontava para a cabeça e o peito – “estão aqui, você pode não vê-los; mas sei que estão”. Começou a enumerá-los com a voz alta e rouca, depois foi acalmando e quase passou a sussurrar: “Heidegger, Marx, Freud, Pessoa, Baudelaire, Balzac, Shakespeare, Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Eduardo Galeano, Genet, Darwin ...” falou tantos nomes quanto pode. Dos mais conhecidos aos que eu nunca ouvi falar. Fez uma salada de épocas, de áreas-filosóficas-psicológicas-literárias-políticas-teológicas-poéticas-modernas-contemporâneas-científicas e até de auto-ajuda... Sem falar na confusão de personagens, que começou a citar, como se estes fossem seus velhos e bons amigos, conhecidos, familiares...
Quando afastei meus olhos para o longe, ele sentiu minha confusão e, então, com urgência disse que eu precisava ler o último livro que ele havia lido. Sem perceber era penetrado por um reino de escuridão, dor, alegria, gargalhadas, luz, náusea, êxtase, amor... Quis voltar, mas já era tarde. As sensações cresciam e a voz dele repetia enlouquecidas coisas doces, difíceis, importantes, doentes e verdadeiras – acho mesmo que eram verdades o que ele proferia.

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